quarta-feira, 23 de maio de 2012

terça-feira, 22 de maio de 2012

Quando Dilma viu Os olhos do Chico.

Chico Buarque não recorda,
passei por ele na praia de Ipanema,
eu mineiriava verdes olhos no dele
com as pedras portuguesas no meio do caminho.
Chico Buarque não lembra, 
mas eu era um dos últimos navios 
que ele jamais havia navegado.

Mas Chico Buarque lembra 
daquele dia em que a Adelaide
quase pulou do sétimo andar, 
Julio de longe a olhava,
e um périplo de tesouras gritava:
Pula, pula, pula... Vai!!! Morre.

E eu estava lá sentada diante da tesoura,
da faca, do fio, do porrete, 
e era por aqueles olhos que eu vivia:
olhos de verdade, longe de lá 
eu ainda fugia do pau de arara, 
daquelas mãos que me vedavam os sonhos.
Mas ainda assim eu ventava, 
ventava, Chico, esse silvo esganido
que agora, quase trinta anos depois
me chamaram para contar a história
para todos os nossos olhos,
o meu, o seu, os deles, 
olhos de verdade. 

A última gota de Sangue


Não ouço sua voz
enquanto recito
no canto do meu lábio
Jorge de Lima,
saliva com salsa,
a contradita
que me limita,
assim deixo
que me rendo
uma novela
querendo quiçá
um gosto de pimenta.

O almoço na mesa
me faz falta.
Disse isso para você
quando saiu a roda
da bicicleta e as correntes
se espalharam no aterro
ou no Pau Ferro, não lembro.
São invenções,
não lembro o cigarro
aceso no cinzeiro,
a moeda grifada de Pizarro
é breve verso no papel violeta
agora preso na estante
e que me convida a pendurar
meus pesadelos e a saltitar
na casa em busca
de uma artéria para esta
última gota de sangue.

sábado, 12 de maio de 2012

A pintura



Ainda aquela pintura 
nem muito secou
nem muito molhou, 
breve, esplêndida
surgiu assim aquarela.

Era seio, era sorriso,
uns dentes maciços,
mais um peixe de espinhos,
uma praça, um banco,
uma mesa e um roseiral.

Lá estou também:
século dezenove.
Luzes e sombras.

Um vitral, um pé direito alto,
lá estou amortecido
olhos vítreos, suspensos,
boquiaberto,
diante daquela altivez,
da mão, do pé,
dela que me aguarda,
branca, macia e fresca,
calma e muda,
plácida, a idealizada.

Flávio Corrêa de Mello

A Mulata

Talvez assim 
bem escura, não sei,
mas me salva 
assim na mulata 
a cor de um infinito
universo de poros
nos quais brilho
cada bolha suada.

É como mergulhar profundo,
cavidades, olhos e feixes.

Você me vem dizendo
quais as flores necessárias,
eu quero cheiro de pele,
de arruda, de santa maria,
de eucalipto e de teu cheiro
mais que tudo apenas
para ser um pouco de barro
e um muito de lama, juntos.

Flávio Corrêa de Mello

Sexta-Feira

É sexta-feira 
e crescem os ruídos lá fora.
Neste cair de noite 
me sinto Hitchcock 
percustrando no vazio, 
não as janelas, 
mas as almas dos demônios
que rimam em minha cabeça 
insanidades que não quero
e não devo cometer.

Gina está sentada no coreto da praça São Salvador,
e ouve a mais nova sensação da cidade cantar
e bebe goles breves de cerveja no gargalo.
Rosana chamou seu par para dançar um forró em São Cristóvão,
o bate coxa escorre o suor em sua saia
já colada na perna.

A noite está quente,
a lua me morde a nuca,
e minha cabeça rebate, rebate.
Hoje será uma noite da qual me restará
o sábado, o acordar e o agradecer.

O cão rosna,
penso nas antiguidades
da feira da praça XV.
O cão rosna
e sorrio para a atendente das lojas americanas.
O cão rosna um pedaço de pau
para estalar a cabeça de alguém.

Ouço um correr de persianas,
há lá fora uma sombra, espreita,
está no sétimo andar do prédio da frente.
Não a vejo, não, mas ela lá está,
me olha e imagina o que teclo, creio.
Sabe meus hábitos, sabe o que não sei,
o que não vejo nem quando falo contigo,
aqui, nesses versos que se perdem,
nestes demônios que desabafo,
para que estejas, finalmente,
liberta deste poema que sou hoje.

Flávio Corrêa de Mello

Todos, todas



Não sei para quem escrever,
se para ela, se para você.
mas o que importa!
Pela força, me escrevo.
Me sorrateiro desenho
e desdenho do desafio.
Disso não preciso, mas quero:
as pintas do umbigo
e a sola na ponta do calcanhar
para beijar, lamber, rasgar.
Não seria assim o quanto se paga
para escrever livremente?
você deitada e o teclado
deslizando as palavras:
pelo, seio, cheiro, sola,
mordidas, rasgos, silvos,
e depois a cozinha, a sala,
a área, o ralo entupido,
e eu vestido de John Holmes,
e você de copo d'água bem gelada.
As flores já estão lá meu amor,
estão na sacada, estão nos sacos
que embrulhei para guardar
o que é desnecessário:
saber para quem escrever,
não importa, você, ela,
aquele, aquela, somos todos.

FCM

sábado, 5 de maio de 2012

Quarenta

Em breve quarenta 
e me saco fora deste sombrio
perdimento de ser, o que ser?
(ainda persiste a pergunta, oras...)

e atrás da porta 
não há nada que subentenda
e até a poeira que fabriquei 
nestes anos é rala, reles e calva.

Se nos passamos ao longo,
se não houve o tempo de nos tornarmos velhos gambás,
foi porque ainda esquivamos os fiapos.

Em breve quarenta
e as coisas são todas tolas
menos o sol, as árvores,
a água carregada de bitucas
que escorre no ralo,
menos mesmo meu espírito
que me resplandece os olhos.

Na Janela

Somam-se agora os anos,
os dedos, as agonias
e as calosidades deveras 
esperam o renascer 
de uma esperança.
Não acontece.

A vida segue esgueirada,
traduz-se por uma pequena bromélia
que surdamente teima em me indagar:
"Como poderia ter aparecido aqui
nesta sacada de apartamento, neste mármore
e debaixo desta janela gripada?"

Ainda insisto em passar WD40
nos calos e na janela
enquanto aprecio a tal lua daqui,
arremedo de vista que divido com minha bromélia,
aqui neste final de dia
torcendo para que minha barriga diminua um pouco,
a massageando agora ligeiramente,
agora oleosa e lubrificada.



Flávio Corrêa de Mello