domingo, 18 de março de 2012

TODO - ERICSON PIRES

Todo - Ericson Pires

para N

TODO DIA É LONGO. Todo dia é vermelho. As linhas não
alcançam. O parto corta o meio. Limbo numa fresta. Todo
dia não termina. Todo sol é vermelho. A chuva volta. A chave
abre. A chave fecha. A porta, o caminho, o doce, úmido, vulto.
TODO DIA. Pintas na cara do dia. Encontros. Todo dia volta.
O verão é vermelho. Nada volta. Nada foi. Tudo. TODO. Todo
dia é outro. Instante vermelho. Mesmo mil vezes. Repetido.
Repetindo. De novo outro. Nenhum. Em nenhum. Nenhum
mesmo. Réstia. Restinga. Filtro branco. Fumaça de ônibus
velho. Acelerador de partículas. Todo dia encerra. Teu cabelo
vermelho. Meu mamilo vermelho. Tua unha vermelha. Minha
ponta vermelha. Vermelho são cores. Todas as cores. Todo.
TODO DIA é.

sexta-feira, 9 de março de 2012

O marrento

Quem já viu um cachorrinho de olhos esbugalhados, andar marrento e patas arqueadas circulando pelo bairro de Laranjeiras? Ele está temporariamente hospedado em minha casa. O simpático marrento, o romarinho, tem por hábito latir nas madrugadas para qualquer barulho que surja... late mas não morde. Sacode o cotoco do rabo e esbugalha mais os olhos. É muito chato, o sujeito. Se aboletou por aqui e acha que é o dono do mundo (o dono do pedaço) e ai de quem diga o contrário... ele nada se incomoda em rasgar com os dentes qualquer coisa que lhe apeteça: um celular, um chinelo ou o que esteja ao alcance de sua insaciável voracidade da madrugada.

No início até que tentei ser tolerante e educado com o amiguinho, imbuí-me de cordialidade e um espírito paterno de educador. Até dei umas passeadas por aí com ele, tentei lhe ensinar a urinar com uma pata levantada, disse-lhe para fazer cocô na rua, não funcionou... Afinal, a única serventia eram os gracejos das meninas com o marrento:

- Bonitinho, diziam.
- Fofura, esse buldogue!

E então eu me empertigava e discorria um ou dois comentários amáveis a cerca do meu amigo marrento, mas era apenas isso, sem acréscimos.

Como disse a coisa não funcionou... e como ele não é meu, já viu né... por aqui não se cria. Afinal, apesar de ter compaixão por ele não há sinergia capaz de possibilitar uma convivência pacífica entre nós. S eu der bobeira, ele mija na minha cama.

Bem, o marrento está com o dead line estabelecido para ficar por aqui. Vez em quando, dou umas bananas para ele, pois sei que é a alimentação que ele curte. É o que posso fazer no instante. Em junho nos despediremos...  sem culpas e sem remorsos, como sempre soube... era temporário. Tudo é temporário. 

segunda-feira, 5 de março de 2012

MARÇO E O MAÇARICO

Hoje, caminhava pelas ruas do bairro de Botafogo. O sol de meio dia e meio realmente havia dito ao que viria. Aliás, assim tem sido nas últimas semanas. Mas hoje, diferente de sábado, por exemplo, dia em que eu marinava  minha testa debaixo de uma barraca na praia do Leme, hoje estava terrivelmente quente, calorento.

Na verdade, tanto os sapatos que eu calçava quanto as meias que eu vestia eram pouco apropriadas. E tinha a impressão que meus pés explodiriam em questão de minutos. A camisa grudenta, o jeans roçando as pernas e o sol ali me passando atestado de hipertenso, aquilo tudo era de morrer... não fosse aquele corpo que veio se ondeando em minha direção com o short jeans curtinho e os bolsos internos se prolongando em V nas coxas, repleto de pequenas pedrinhas brilhantes que faiscavam nos meus olhos o sol.

Ali, naquele instante, realizei mais uma elegia pecaminosa sobre a vida, vendo aqueles cabelos longos, negros, aquele top igualmente suarento, a pele luzindo sal. Tudo foi esquecido, tudo. Entendi tudo, entendi o mundo, entendi a beleza e o porquê do poetinha escrever letras para os jovens artistas dos anos 60 em vez de hermetizar em concretudes a ausência da musa, o vazio geométrico e cúbico. Ali fiz as pazes com o chão, chão, chão, com o simples erguer-se diariamente com o pão na manteiga, o café fresco e a leseira das seis horas da manhã. Realizei um poema, o melhor já sentido e vivido, mas não o escrevi. E não morrerei por isso. Na verdade, também vi algo mais profundo: vi o maçarico de março me atingindo em cheio com sua luz cegante no meio dia de uma rua de Botafogo. Era a menina com seus vinte anos de idade, era eu de peito aberto para a vida, era a cidade, o sol, o sol, o sol.