sexta-feira, 31 de julho de 2009

LAMAÇAL

Lá no fundo do lamaçal,
na emergência das febres,
nas veias expostas, rompidas,
lá na boca do vulcão
ou do que se assemelha ao vulcão,
mas que também pode ser ânus ou furacão,
lá, a lira ventilou a luxúria e o álcool,
os sonhos canhotos, as frituras canhestras
e a fissura ungida por fina camada de vaselina.
Movimento retorcido, jogo de cimitarras,
brados e bólides assassinos,
fricção cáustica e chamuscada,
angústia nauseada,
meteoro e morteiro
e tudo que arremata e arreda,
e leva o pó ao fim,
ao ermo com garras e rezas.
A Terra é de lama e de pó
e a lira canta o chumbo
de crianças mortas.
O verso então redobrado
retorna à espinha e retoma
a forja da vida,
o sedimento do sangue.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

PAIXÃO E POEMA

O poeta apaixonado
dedica versos e livros
para mulheres que comovem
e movem na impossibilidade
da matéria e no reverso
do espelho o beijo
tem cores para cores
e superfícies para desníveis.
É um ser em profunda
profusão dos amores mortos
e não ama e incompreendido
confunde e co-funde
imagens e mistura a sintaxe
e vagueia na ortografia
e deixa espólio
fugaz e rápido
de poesia mal
capturada.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

as caixas

Me cansei de deitar em cima de caixas de livros. Isso sempre me deixa com uma dormência na espádula. Perdi alguns anos nessa coisa de deitar em caixas. Acho, na verdade, que perdi a noção de tempo. Se fazia sol ou não. Para mim é noite, sempre. A questão é que não sei o que fiz durante esses anos. Quero dizer, o que realmente fiz de produtivo. Andei aqui e acolá, trabalhando, fazendo meu sustento de morto-vivo. Nem sei quando o hábito começou, agora tanto faz, o que importa é que não me deito mais em cima de nenhuma caixa. Aliás, não me deito mais. Faz 72 duas horas que estou acordado, suando, sofrendo, com medo de adormecer. E se não durmo, consigo contar as horas e os dias, mas sei, vai chegar o momento de dormir. Tenho medo de sonhar e do que vou sonhar. Ilusões me apavoram.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Leo Marona - Pequenas biografias não-autorizadas



A poesia e os poetas sempre nos reservam grandes momentos. Desfrutar, apreciar e saber ler um poema assegura uma grande viagem para aqueles que participam deste universo. Não tenho dúvidas disso. Entendo que Leonardo Marona também compreende o que estou escrevendo. Não só ele, pois este ano tem sido promissor na poesia. Vi e li alguns poemas de autores que me fazem mergulhar no mesmo rio. Além de Marona, Gregório Duvivier e Diego Grando nos brindaram com excelentes livros de estréia. Livros cujos poemas possuem uma riqueza melódica e um trato mais intimista com a palavra e com a continuidade do verso. Livros que reatam a poesia com a espontaneidade ─ favor não confundir com ingenuidade ou versos de má qualidade ─ e com o toque íntimo: “o escrevo para você e contigo”.

Duas palavras escritas por Abujamra na orelha do livro Pequenas biografias não-autorizadas (7Letras, 2009), de Leo Marona, me chamaram a atenção: avalanche e fecundidade. Há outras que podem se conectar no mesmo campo semântico: confissão e jorro. E na poética do autor estas palavras adquirem valor de combustão, são pistões propulsores que ditam o andamento do livro. A divisão do sumário em duas partes elide a uma referência cronológica. Correspondem também a um tempo poético de descoberta de afetos e de gostos. Assim, as avalanches fecundam versos sobre o que o poeta sorve no seu cotidiano e que constituem suas biografias não autorizadas (Rilke, Cortázar, Antonioni, Descartes, entre outros...).

Na poesia de Marona o ritmo é emblema motriz, vitalidade. Sobrepõe paradoxalmente a escolha de uma estética morfossintática. A frase melódica implícita nos versos não se apresenta isolada, mas sim constituindo um Todo em cada poema, dividindo-se em núcleos distintos, em blocos de sentidos que complementam o valor de unidade dos poemas e por conseqüência da obra, como no poema Roçam-se os pés, no qual há um enlaçamento do ritmo do poema e a imagem de um cadenciamento dos pés através de rimas continuadas:


"acho que todo mundo / um pouco no fundo / sem saber como / quer o amor / como o fruto / de outro sigilo / secreto defunto / (...) agora é tarde e frio / os cílios se dobram / e existe um certo vazio / que só preenchemos / com calor hesitante / e os pés enlaçados / carregam o instante (...)"


De certo modo, a construção das imagens obedece a alguns critérios: o lirismo pessoalizado, reflexo do momento, é construído em uma sucessão rítmica de imagens. Se o ritmo dita a cadência fluídica, muitas vezes acelerada, o fluxo de imagens alardeia o caráter expansivo do autor, caráter voraz, juvenil, tentando ourivezar seus ímpetos, contidos pela inexorável ação do tempo, como no poema “ vinte e seis”, que debuta a segunda parte do livro:


“um dia, inevitavelmente, aconteceria. / o antigo poeta das linhas apócrifas/ sobre fantasmas internos e naufrágios / o infante terrível / o descabelado, / o vil / sem regras daria lugar ao homem grave, / à besta milenar – homem sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sem fim inclinada para baixo, / as leituras eslavas, / a sutura do ódio / que prolifera para dentro em pústulas / e adquire a petulância de um mar parado.”


Poema rico em imagens e alusões. Há acima um rebuliço de nuances tanto de referências poéticas (Pessoa, Homero, Rimbaud), quanto de metáforas da rebeldia que se atenuam em morbidez romântica ( ... à besta milenar – homens sem pernas, / meio doce meio amargo meio homem, / a boca sempre inclinada para baixo, / as leituras eslavas, / a sutura do ódio...). E a idéia do mar regurgitando aceso e que por ordem do tempo (Um dia, inevitavelmente, aconteceria.) se condensa em algo flácido, sem músculos, um mar grave, parado. Ainda assim, há o desejo, a voragem de deglutir o Todo, mesmo consciencioso das etapas do processo do navegar pelos mares da poesia. Esta consciência é dolorida, é creditada aos embates entre o conter, o discernir e o expandir o verbo e o verso. No poema carta a um estudante de belas-artes, por exemplo, Marona realça o tom prosódico com descrições de recomendações poundianas:


"Ezra Pound dizia / nos seus ensaios sobre poesia / que a poesia era uma ciência / assim como química, medicina. / ele acreditava piamente / no ritmo absoluto / de cada ser humano. // nas formas sólidas e fluidas do poema / - como árvore ou água despejada - / concebia a poesia como arte exata / e cada homem como seu próprio poeta em si, / sem diferença entre amadores e profissionais (...)"


A dicção professoral acompanha o poema:


"dizia que não devíamos esperar demais / por ter nosso valor artístico reconhecido / antes de havermos descoberto algo novo. // dizia que devíamos ler os franceses, / sobretudo os gregos, / os florentinos, / que devíamos ler Confúcio inteiro, / Homero inteiro, as versões, / Ovídio e os poetas latinos “pessoais” / Catulo e Propércio. / ele veio do alto e nos disse, pousando: / não percam tempo com o que não presta, / vão direto ao talo do osso primordia!"


Súbito, depois de decantar o receituário, o poema caminha para o corte final: a supressão da direção professoral em prol de uma autonomia rebelde (quero que você, Pound, se foda. / Quero escrever tua poesia austera.), independente e um desejo autofágico de incorporar a poética poundiana em sua essência e não no seu modus operandi. Aí, de certo modo, o poema se apossa de sua liberdade total de criação. Me remeteu muito ao poema Estou com 25, de Gregory Corso, poeta beat, que escreveu os seguintes versos:


"Com o amor minha loucura por Shelley / Chatterton Rimbaud / e a tagalerice-carente dos primeiros anos / já fez correr de um ouvido a outro / EU DETESTO OS VELHOS POETAS ! / Especialmente os velhos poetas que recuam / que consultam outros poetas velhos / que falam de sua juventude em suspiros, / dizendo: ─ eu fiz estes naquela época / mas foi naquela época / foi naquela época ─ / Ah eu faria calar os homens velhos / diria a eles: sou amigo de vocês / o que vocês já foram um dia, através de mim / serão novamente ─ / E depois à noite na intimidade de suas casas / rasgaria suas línguas que só sabem se desculpar / roubando-lhes os poemas."


Esta semelhança de se apossar das outras vozes permeia quase todos as pequenas biografias não-autorizadas. Vemo-las em orangotangos ( herdeiros da poesia enlatada e da urina impura, / colheremos o excremento de mentes inseguras. ), em Whitman ( você tocou o primeiro clarinete de fogo. / deixe-nos sair do fogo, recuperar a casa. ), em Kerouac ( teu erro foi me fazer pular etapas / para chegar mais cedo à tua velhice ... ) Assim, a proposta poética advém da necessidade de reescrever cada influência, cada leitura pertinente, caracterizando-as tanto na sua origem ─ a forma e o conteúdo dos artistas biografados ─ quanto na fusão resultante do encontro entre as biografias e o autor, o Leo Marona.

Talvez o que sintetiza e o que “não” autoriza Marona a tematizar outros artistas seja justamente o seu momento poético de sorver o máximo possível do universo e apresentar-nos esta recolha de poemas. Talvez, seja do seu espírito jovem e índole ter uma voz tão plural, tão rica de nuances e, não se engane, claro leitor, como disse no início do texto, não há ingenuidade, pois os ajustes dos versos demonstram domínio de técnica, mas a que isso serve, se o que importa mesmo é o escrever consigo, para ti, para mim, para Antonioni, Chet Baker, Maiakovski, e tantos outros autorizados ou não.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O recital

O bacana de ler poesia em um recital é o olhar amiúde de alguma ouvinte. Ali, naquele olhar, o que se percebe é a sedução, apreensão de um sentimento que escorre como chocolate na garganta, pelas amídalas. Umas palavras, uns vôos que o dândi encosta na boca da musa. Alías, nosso poeta parece só vê-la na platéia, aliás, só vê os olhos dela, apesar da penumbra e das cinzas esfumadas que nebulam no recinto. A sala está cheia. O Uruguaio chacoalha um coquetel enquanto uma vela projeta um brilho amarelecido sob seus bigodes. Nosso poeta escala os tons, os semi-tons, os "ais" e casemira epopéias pessoais. Sobra no ar o veludo adocicado de perfumes sessentões e na sala, na ante-sala da noite, na hora do chá, o charme do pequeno apartamento da Vinícius de Moraes é o que existe para o nosso poeta e para aquela linha imaginária que o liga a sua musa. Ah! suspira o poeta no fim do recital. Após seu breve momento de flutuação, ele desce da pequena ribalda e acolhe os sorrisos do pequeno público. Como quem controla a ansiedade, deixa sua musa para o último sorriso e um café quem sabe... Mas o recital continua, tem de continuar, agora sobe no palco um escritor de vulto, de renome. E nosso poeta percebe o quanto há de buxixo e burburinho naquele pequeno apartamento, o quanto é difícil se locomover, o quanto a fumaça incomoda as suas narinas, o quanto ele já havia dito o que precisava e o quanto sua musa já era ex - musa de permanente mal feito e camisa espalhafatosa e que nem mais o olhava. E o insuportável era o fato de o uruguaio estar na porta, ali na cerca da saída pronto para recolher as comandas e o dinheiro daquele barzinho clandestino. Ao poeta restou apenas se sentar no canto, alargar o colarinho, desinflar o peito e contar os segundos no relógio.

sábado, 18 de julho de 2009

A hora de escrever

Já sei a hora de escrever. É agora, depois de falenciar o dia a ranhura das batatas da perna negaciam com as últimas forças. O vento deposto de sua brandura invade minhas narinas com voracidade aquilina. A mente pousa na janela o dia encerrado. É o descanso sob cotovelos e a pausa das horas de pensamentos bestas, de ilusões mundanas. Hora estorvada. De transbordo.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Três poemas de Moacy Cirne



POEMA PARA
in cinema pax (1983)
tua boca, quente e aveludada,
acaricia o meu sexo
língua - prazer
língua paixão
língua-pasárgada
gesto que me doidice
enquanto, lusco e fusco,
navego em teus horizontes mais íntimos
para te lamber
todatodinha
até que sejamos
(sonhos e crepúsculos)
uma só pele
um só tato
um só gemido
na noite espanto de novembro
AUTOBIOGRAF
in docemente experimental (1988)
pedras e crepúsculos da minha infância
eis a oferenda seridolente
neste outubro lênin fuzil e amor
à espera da penúltima viagem
à espera do poema do sim e do chão a chão:
cabra da peste,
caatingueiro
caatingal,
eis-me
caicó sertão seridó
(faca e bala
bala e faca)
nascevivendo
de 40 e qualquer coisa:
a luz que me feria
não era luz
era a imagem de antônio silvino
nas beiradas do velho itans
a lua que me gemia
não era lua
era a imagem de dorothy lamour
nas telas do velho pax.
riovivente
de muitos
silêncios,
a meninice
cobria-me
de espantos,
filmes
e gibis.
UM OLHAR CANGAÇO
in qualquer tudo (1992)
um olhar cansaço
um lambelambe sem memória
um velho cinema pax
um cão sem plumas
um potengi ao crepusculecer
um maraca maracanã
um poema sem poesia
um xerenhenhenhé de mulher
um quase tudo nenhum
e
50
sonhos adormenguecidos
* Poemas extraídos do livro Continua na próxima, edições Leviatã, 1994.
Ps - Peço desculpas ao autor, mas não consegui reproduzir a disposição gráfica dos poemas. Tentei por duas vezes, entretanto o blogspot não me obedece os comandos...