sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O vendedor

O vendedor me para diante do espelho,
segura na alça da manga e diz:
Num tá maneiro Flávio!
Depois me gira de lado, suavemente,
o sorriso na lapela da camisa, a mão no meu ombro:
experimenta com essa calça estonada
-- Eu ainda um pouco no não quero nada --
quando me vejo ele traz polos
(uma listrada, outra lilás)
O som é cool jazz lounge
a bermuda combina com aquela mina
do cinema de logo mais.
E no rosto do vendedor já estou o ouro da meta batida
escorre um filete de suor de sua testa,
ele disfarça e esconde:
E aí Flávio, mais alguma coisa,
uma cueca Kalvin Klein,
um cinto, hein...
Não, não... Vai!
Show!

A caixa, o cartão:
quatro vezes para o jantar
nas minhas contas não vai dar
Bota em seis?
Aí não vai passar, vou ter roletar,
digo: fica para a próxima,
fica para a próxima.
O  vendedor pensando
é o migué do caroço,
migué do caroço,
o  vendedor pensando no tijolo,
na laje da casa,
no aluguel, no show do sorriso malícia,
Aquele olhar de socorro para o gerente.

Muda o som, cool dance lounge,
outra vida, outro rolê.
O caixa caprichando nos laços do presente,
demorando, quer um desconto?
um baixa aqui, tira dali,
um trato feito, desfeito e refeito,
mês que  puta que o pariu
mês de dia cinco, dia dez, dia quinze,
mês de pede para o Zé, para o Joaquim,
sem motel depois do cinema,
sem jantar,  sem almoço no japonês,
sem táxi, só na sola do calçadão.

O vendedor me leva até a porta,
fala do tempo se faz sol se faz frio, se chove,
se o domingo vai trabalhar,
se o patrão vai empurrar o cheque,
me abraça até a próxima coleção de verão.
Vou saindo e dentro da loja
ele respira, desmonta o personagem,
uma dorzinha no calcanhar o aflige,
enquanto eu dava pernas para que te quero,
cineminha e roupa no esquema,
o resto é contigo, meu amor, o jantar, o apê e
o box da minha super cueca listrada.

FCM

Em trânsito

Um dia de des-sóis,
Cabelos em desalinho e vento de moto,
Fumaça carburada no pulmão
E na espuma da cabeça
A pergunta de uma espelunca:
Como dizer o contido,
 que represado estoura os poros e as cervicais?
E cantar assovio de sábia, se a brita é heavy metal?
Um dia de bancos duros
e sósias das coisas mais simples,
de partilhar, de somar e de não dividir;
de teoremas e tomos e filósofos da tal tomada
de consciência de criar o comum a todos,
 de coletivamente ser,
mesmo que ainda assim,
eu fui nascido de uma única placenta
de mãe e seus dois seios.
Um dia cravo fotos de revistas
antigas na parede de um muro,
e insurjo no des-sol o desalinho
de uma gente feita para brilhar,
e paro de me ser a lâmina cega da navalha
e corto e corto e corro a notícia adiante:
PAREM DE NOS MATAR
nos campos, nas pinheirinhos,
nos mares de Marte,
na quinta marcha da moto atravessando o túnel.
Neste dia, ainda sou o braço que arrasta o guidom
no chão do asfalto,  a cinza pele de fuligem,
coberto de minério  tudo se esvai,
o des-sol é lua seca,
é minha mãe chorando
no cemitério dos meus sonhos
e a artrose do tempo dizendo:

o velocímetro parou.

FCM

domingo, 2 de agosto de 2015

Espantalhos e Girassóis



Os cacos e retalhos
estão dispostos
no milharal esquecido dos corvos.

Espantalhos e remendos,
no coração uma parede de chapiscos.

Cismas que remontam a infância:
os girassóis amarelos na paisagem do fusca
murando o meu amor dandi,
o colar de contas vermelhas atravessou o corpo,
a resina escorria no carvalho.

Mas o espantalho nunca dorme,
seus braços ondulam,
rebatem, tapas e cachos
alhures na paisagem --
apenas uma lisa tela temperada --
o sol, o girassol.

Flávio Corrêa de Mello.