segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O jacaré

Ele mergulhou no rio,
na lama, no lodo úmido.
Lá ruminou escamas,
espreitou aventureiros:
macacos, cervos, cordeiros.
Abocanhou sua vítima
e o tragou para o fim.
Chafurdou naquele veio
do rio que ainda
suspirava um fio líquido
embaixo do sol rutilante.
Foram dias mergulhado
entocado no pasto argilático
e aquela secura de lágrimas
no escuro quente
do fundo do rio.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

sexta-feira 13

A noite caiu silenciosa na cidade. O vento silvava pelas esquinas, pelas ruas. Pierre arrastava os dois erres nas costas, seus pés chapeavam no chinelo a poeira suada. Era uma sexta-feira 13 do mês do desgosto. Muitas folhas de amendoeiras esvoaçavam na rua, algumas iam em sua direção. Ele se desviava lentamente levando o peso de seu corpo de uma semana de trabalho pesado ora para esquerda ora para direita. Naqueles instantes, assim corria também sua cabeça: ora para esquerda, maldizendo o que deixara de ser, ora para direita, contente por não ter assumido compromissos de uma agenda lotada. Aparou-se em uma árvore para fugir de uma lufada que o surpreendeu. Talvez tenha sido o vento mais-mais forte da noite ou ainda não... ou ainda sua cabeça iria latejar mais e mais e o braço tornar-se-ia tão dormente que Pierre teria de apoiá-lo na protuberância da imensa barriga, escondendo o dedo no umbigo. Olhou à procura de um abrigo que fosse, uma marquise, uma reentrância qualquer, mas nada, apenas lhe restava aquela árvore. Em um átimo de segundo tudo desaparecera, as ruas, os gradeados dos prédios e das janelas. Agora uma neblina enovelou Pierre e a árvore. Dos sulcos da árvore escorreu um musgo de sangue e micróbios e bactérias purulentas. Era sexta-feira 13 e Pierre devaneava. Via sua morte se aproximando e ela não tinha aspecto de bruxa ou de morte com capuz e ceifadeira. Tinha sim um rosto de juventude e cabelos negros, de namoradas, de bolinho de arroz na casa da avó, um cheiro de saudade, de jogo de pedrinhas com os amigos e de missa aos domingos, dos pequenos furtos e beijos roubados. Se sentou impotente, fechou os olhos e deixou que todas suas lembranças amainassem. Assim o espírito aquietou. Mais ou menos umas duas horas depois, umas luzes vermelhas se aproximaram dele, era o SAMU que chegara para ver o corpo daquele homem quase pregado a árvore, sentado no meio das pedrinhas do canteiro. E lá estava Pierre que arrastava os erres pelas costas, e o enfermeiro da ambulância ainda comentou: Esse daí parece que morreu querendo esquecer seus erros.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Ponto de Solano




O que é este ponto inerme e que se preenche por si próprio e que está defronte minha mesa de trabalho indicando uma pausa, um stop? Resoluto e imóvel, ele me desafia a algo de mais imaginação: algo como um "ei... preste atenção aqui para o que eu posso fazer: cambalhotas, petelecos e riscos, palavras novas, frases que você jamais ousou..." Então em um piscar de olhos, ele se cola na minha retina e para onde olho, lá está ele nas paredes e na cortina, na porta do armário. Em instantes retorno o olhar para ele e me fixo neste joguinho divertido de vê-lo pulando em vários lugares do quarto por várias vezes. Mas de repente, numa destas rodadas, quando a vista já começa a lacrimejar há um esteio diferente no ponto que me faz deter a visão. De fato, agora ele mudou, deixou de ser aquele ponto imóvel, redondo e gordo, e apareceu uns riscos que se espraiam por toda a tela do PC, partem em diagonal e todos partilham da mesma origem, o ponto, aquele ponto inerme e imóvel que eu vira pela primeira vez na tela do micro. Parece, não... não parece... ele de fato deixou o cabelo crescer e agora diante dos meus olhos há um asterisco, um ponto hipie, descabelado e que pigmenta a tela de tal modo que me pergunto: quais palavras ele sinaliza, quais significados? E agora o jogo não é mais o de girar a visão pela tela, pela parede. O jogo agora é de imaginação: e se por acaso este ponto deixasse escorrer uma seiva, uma gosma que pinga-pinga-pinga. Tornar-se-ia uma vírgula? E que pausas esta vírgula iria indicar, o que viria a seguir... apostos, conjunções adversativas, afirmativas, advérbios modais, de tempo? Talvez uma série de afirmações cabais sobre o mundo, a paz no mundo, o plano econômico do governo da Dilma ou um-não-sei-o-que-que-me-diz-que tudo será melhor no futuro pois a conjunção dos astros apresenta um próximo semestre bem mais promissor, mas que para isso acontecer é preciso ter disciplina todos os dias, todos os dias uma agenda com listas, com riscos, com tarefas. Aí então, talvez, repito talvez, essa vírgula acrescente algum cifrão em sua história decimal. Este talvez seja o ponto de Solano, aquele que é de ano a ano. O ponto exíguo que reluz as coisas que realmente valem, lépidas em sua prática de quicar-quicar-quicar e não se deixar enovelar por estranhos pensares. É o ponto máximo de vida e o mínimo. Ponto zero do infinito e que agora me faz perguntar: Ponto, qual é a sua?






sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O Trem

Engenho de Dentro, Madureira
Deodoro e este sonoro
estalar de ferros

Saculejo café com pão
café com pão, não...
é pistão, pistão

Castanho é o sol lá fora
Brilha nos tijolos descascados
Ainda assim, anda-se
um bocado abafado
o peito na minha cara
e este suor de enlatado

Meu Deus, onde é que estou?
É olinda, é? É juscilino, não é?
É pistão, É pistão

Por onde é que ele vai
a fora este desvão,
pois já me derrubaram
uma marmita

é que o maquinista
beijou o ferro retorcido
e agora vôa,
até Saracuruna
e segura, e segura
e balança e balança
lá vai o temido,
o benzido, o velho,
lá vai, lá vai, lá vai
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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Na cama

É domingo de tarde, dia de pasmaceira e estou sentado na cama e pela janela entra a luminosidade de um sol castanho descascado que se esparrama suavemente no taco do quarto. Este mesmo sol reluz as folhas de um pequeno jardim suspenso do vizinho. Inspiro e expiro lentamente: uma, duas, três vezes e me digo: estou na minha casa, estou na minha cama, esta cama é minha. Apalpo e agarro o lençol, os travesseiros. Por entre meus dedos, o ranger do algodão do lençol me causa pequeno arrepio. Subitamente uma voz vacila amiúde em mim. Não se trata de uma voz desconhecida, pelo contrário, há tempos que a conheço, embora, desta vez, ela estivesse assim débil demais, porém viva, sim... ela estava rondando por ali, procurando estrilar algum eco no meu cérebro. A semitonante aos poucos tomou forma e ganhou sintaxe, eu já a ouvia nítido e claro, como um anúncio de um pleito consumado, no qual, é claro, o derrotado fora eu. Agora aquela nitidez, aquele zumbido me incomodava assustadoramente, tomou o vulto de um estrondo seguido de diversos cânticos moribundos e então era eu novamente o estranho, o perplexo, o inadequado, aquele que nunca consegue achar o caminho de volta, o que cruzou a linha. E este sentir, este pesar me circunspecta, por mais que eu esforce ou me descabele para parar a voz que relincha na minha cama. Palavras! fluem palavras desta voz: palavras, frases, palavras. E assim, escutando esta voz, já nem me dou conta do meu corpo, do meu cansaço na sétima vértebra, da dolorosidade do calcanhar, assim vou semicerrando a vida, deixo para o vazio a voz, pois é de lá que ela viceja seus silvos, já inconsciente me despeço do castanho do sol e, finalmente, o sono me embarca em mais um sonho atribulado, cheio de vozes, cheio de vozes.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O cão e o vazio.

Me perdoem aqueles que batalham diariamente seu ganha-pão. Me perdoem, pois eu também o batalho e muito, mesmo quando a minha falta de desejo me diz lá no bem fundinho: fica deitado. Me digo também que fui mal aprendido, o mimo me estragou. Criação de vó, Olha só!É verdade: olha só. O marasmo, o marasmo foi me engolindo nas pequenas lidas de ter de ganhar o tal pedaço de pão. E o fracasso cresceu, cresceu para danado, tanto que olho para o passado, revejo os tempos e mesmo assim a morosidade continua habitando a pálpebra. Poderia me mentir um pouco: Ah eu fiz isso! Ah eu fiz aquilo! Ah eu publiquei em tal e tal lugar. Meus textos correram os rios e inundaram de poemas algumas mentes. Mentira! Mentira! O que pousa agora pelos meus escrutínios é a voz do fracasso. O inapelável fracasso fruto da procrastinação, da eterna preguiça. Não se trata, Não se trata de ser ou deixar de ser o mito superhomínico, não... não é isso. É o vazio, a nesga de escuridão, a penúria e essa mania de auto-piedade. Por mais que me esforce, não valho nada, já dizia Zé Régio. E acordo no dia seguinte, na manhã seguinte, e negocio com o relógio mais 15 minutos, mais 15 minutos. Ah se eu pudesse fazer essa cidade andar no meu ritmo, se pudesse o tempo parar para eu passar arrastando chinelos seria maravilhoso. Se eu pudesse ser apenas um olhar de cão preso numa coleira e passeando, seria divino. Mas não é, pois sou eu que coloco a coleira e passeio o cão, sou eu, inclusive, que persigo quem não paga as contas, sou eu que tenho que de acordar e sair pela manhã para vender livros que não escrevi. E já vendi milhares de besteiras, milhares de livros mal escritos, de porcarias. Mas cada qual com o seu pão e cada qual com o seu cão. E o meu já está aqui me olhando, pedindo para dar uma volta, já vou... Xô preguiça! Xô zica! Depois volto para escrever mais, quem sabe vem um novo livro por aí, quem sabe. Afinal, um pouco de otimismo não faz mal!