quinta-feira, 1 de maio de 2014

FLORES DE PEDRA

Quando se enterra,
se crava ou se escava
os dedos na terra
e se olha não a bela
mas aquela flor lenta,
e que de secas as pétalas
as pedras mais água têm;

quando o corpo é o osso
reumático, anoréxico,
e ainda a teimosia avara
que estala todo o plexo,
nervoso, perplexo,
de tudo o dificultoso
de ir à terra e revirá-la;

quando se carquilha
e já é morta a raiz,
as flores já sem vulto,
qual dentre elas levantara
diante de meus olhos
a ausência do mundo,
esse horror profundo?



Flávio Corrêa de Mello

terça-feira, 1 de abril de 2014

Baía de Guanabara

Como duas folhas jogadas ao mar,
pés flutuam, suas faces são visagens
de um cardume de personagens
que um dia mergulhou na Baía:
Mem e Estácio de Sá lambendo
os pés do Gigante adormecido,
gosto mareado, enjoo e lastros
e golfadas de plástico
no emborco da escuna.

O forte Tamandaré
já não é tanto a pedra
ou o coração torturado
de Fernando Santa Cruz
nem tampouco a morada
dos sedimentos de antigas baleias,
é agora, na secura da visão,
o entorno do lixo de águas abrigadas,
momento em que me desobrigo
de qualquer ser em que um dia sonhei:
coração torturado, irascível,
pensamento sonolento de poeta,
pasto de coisas tardias.

Mais adiante há por trás do lixo de enseada
um disco voador no chapéu de duas meninas,
voam palavras, os poemas são vassouras de mil garis
e a pá toureia no pé da praia de Icaraí
varrendo para aqui e para ali
as últimas ceroulas do baile da ilha Fiscal.

E berro debaixo da ponte,
de lá já caí e levantei
no repasto que estaca
o forte do Tamandaré,
o tesouro da Ilha Fiscal.

São dois os pés e as folhas,
miragens de como estou:
bobo da corte ou mágico de Óz,
o pilar no meio do mar,
vértebra da baía,
a ponta que liga o Rio à Niterói
e imagino: navegar à noite corrói.

Flávio Correa de Mello

domingo, 23 de fevereiro de 2014

o Homem cego lê o jornal.

É noite de sono espesso,
de decretos, de prisões,
e de palmadinhas bem batidas 

nas costas do delegado. .

É noite de bocas amordaçadas,
foguetes e bombas e gás.
O homem nu é suprimido,
o homem cego lê o jornal,
o homem crédulo vota,
o homem sorridente conta as notas.

É noite de tecer poemas em Guantánamo
e ver na televisão a novela das 9:00
e sonhar com os latidos de um cão.
A mulher diz que temos democracia,
o homem diz que faltam prisão para os presos,
o homem diz que os macumbeiros não prestam
e que os viados são doentes.
O homem cego lê o jornal.
O homem crédula vota.
O homem maquina as parcelas do carro econômico.

É noite de sono espesso,
mas todos pareciam acordados,
luzes acesas, rezas, modas vegetarianas,
cruzeiros na baía,
ossos escavados no porto,
os helicópteros viajando
para lá para cá para lá
bitucas de cigarro, tesouras e pau de arara
e o homem cego tudo crê no jornal.

É tarde, adormecida a utopia,
a hora triste do murcho ronco,
o eco do martelo na mesa,
a rosa fora da encruzilhada
é presa na lapela do homem
que escreve o editorial:
o poeta é o assassino!
E o homem cego lê o jornal.

Flávio Corrêa de Mello.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Papel Branco Tinta Negra

Papel branco, tinta negra.

Mesmo se a folha é branca,
é preta a tinta que ali se crava,
negra como as cicatrizes
na pele da chibata.

E se um dia me digo
que não sou do papel onde escrevo
e afio o grafite de mãos negras,
é porque eu me conheço
na carne dos lábios
a consciência de riscar
preto sobre branco,
um enredo de livro
que somente a faca,
o sangue e o grito,
um dia poderá mudar.

Sigo os rumos das palavras:
setas de arco e flecha na floresta,
zangaia, martelos e moitarás,
sete folhas me fecham o corpo
e os atabaques nos pés descalços
(ainda descalços...)
Òké Aro!!! Arolé!Òsóòsi

E quando a rasteira passa o guizo,
o caminho é alto para quem sobe
e no lombo é a vala que desce
é porque, então, me alfabetizo
na volta que o mundo deu,
na volta que o mundo dá
o que me vale são as preces de hoje,
e os poemas de cor e dor
são minhas armas de arriscar.

Flávio Corrêa de Mello.

Vieram me prender


Um dia de explodir pequenas bombas
e passar rasteiras em poemas de cordel,
de abrir a água da torneira
e vê-la transbordar até molhar os pés.

Era para ser água e mel,
mas é de Fagner o sol
sem sombras da Cinelândia
e os versos de quadrilha do Drummond
rasgados na porta do teatro municipal.

Era o silêncio o seco da garganta
quando vieram me prender
disseram foguetes, rojões e pedras,
é o silêncio de cela que me deixa de ser
e na marca da cal é o gás que me cega.

Flávio Corrêa de Mello.