Bem vindos à revista quinzenal ESTUÁRIOS - e. A proposta deste periódico virtual é a publicação de artigos, poemas, crônicas, pictórias e videos, que de alguma maneira chamou, chamam e chamarão a atenção deste blogueiro. O foco editorial é livre, ambivalente, e torço para que reserve algumas surpresas para os visitantes. Não se trata de um noticiário, nem de um relicário das minhas impressões internéticas, mas o escopo flui conforme meu espírito, algumas linhas de afinidades estéticas e ideológicas serão privilegiadas: artes plásticas, literatura, política e o futebol fazem parte da salada.
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Escultura de Jorge Gassetti |
POEMAS
"a lágrima"
Adriano Nunes
[ in que faço com o que não faço ]
depois
nós dois
perdemos
os remos
e o cio...
não era
a esfera
aquática,
temática
do rio.
o rio
não era,
a fera
das margens,
vazio.
"falta"
Romério Rômulo
[in Romério Rômulo]
eu não tenho uma casa
nem um cabelo bonito
a minha falta de asa
é que me faz esquisito.
"o moço"
Moacyr Sacramento.
Não me perguntem quantos anos tenho;
e sim, quantas cartas mandei e recebi.
Se mais jovem, se mais velho...
o que importa, se ainda sou um fervilhar de sonhos,
se não carrego o fardo da esperança morta!
Não me perguntem quantos anos tenho;
e sim, quantos beijos troquei - Beijos de amor!
Se a juventude em mim ainda é festa,
se aproveito de tudo a cada instante
e se eu bebo da taça gota a gota...
Ora! Então pouco se me dá que gota resta!
Não me perguntem quantos anos tenho
mas... queiram saber de mim se criei filhos,
queiram saber de mim que obras eu fiz,
queiram saber de mim que amigos tenho
e se a alguém, pude eu, tornar feliz.
Não me perguntem quantos anos tenho
mas...queiram saber de mim que livros li,
queiram saber de mim por onde andei,
queiram saber de mim quantas histórias,
quantos versos ouvi, quantos cantei.
E assim, somente assim, todos vocês,
por mais brancos que estejam meus cabelos,
por mais rugas que vejam no meu rosto,
terão vontade de chamar-me: O MOÇO!
E ao me verem passar aqui... ali...
não saberão ao certo minha idade,
mas saberão, por certo, que eu vivi!
PROSA
"Vegetativo"
Roberta Mendes
[in Palavra em fuga]
O dia gastou-me até o caroço de mim. O tempo e suas mandíbulas de ponteiros roeram-me ainda o hermético núcleo, empurrando-me contra o duro palato, para, então, girar-me contra a língua espessa das horas à cata de alguma sobra nas reentrâncias. Julgando que me esgotara, deitou-me fora, farejando os restos com o desdém dos cães às tigelas vazias.
...Mas o caroço é a astúcia das coisas, resguardando-se...
Partisse-me o grão, aí sim, mordia-me em cheio o ser. Na porção-grão irredutível de mim, germino a lenta reinvenção da força. Afinal, a palavra de ordem de toda semente é vingar.
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Gatos, ratos.
Eloíse Porto
[in Trema Literatura]
É da natureza do gato caçar o rato.
Condição inexorável de jogadas perversas de caça e abate da presa.
A cozinha era um tanto asséptica. Um tanto limpa e organizada, nada caótica, arejada e moderna. Poucos móveis, nada surpreendentes, um tanto baixos. Geladeira demasiado pequena, pequena de poucas coisas, nada feito ali, algumas embalagens de comidas prontas já reviradas. A geladeira era bastante antiga, meio steam punk – não por moda, mas por herança ela servia ali. As paredes com metade de azulejo imaculadas de brancas – um fina camada de poeira quase imperceptível, meio poeira, meio névoa, não deixava claro há quanto tempo o ambiente não era limpo ou se o ambiente era de fato real, perceptível de mesma maneira para todos.
Um cômodo retangular e iluminado. Estranhamente iluminado. O sol banhava todas as manhãs e algo ali mantinha aquele calor. Não tinha planta. Nem toalhas, paninhos. Tudo madeira branca e metal. Um pequeno fogão. Algumas prateleiras.
De todo ambiente, era o chão que se destacava. Ligeiramente mais alto, lembrava levemente um palco para algo que jamais seria encenado, ou, num outro ângulo, lembrava a todos que tudo é justamente encenação o tempo todo. O fato que o chão era palco, ali o simples cair do macarrão soprava irrealidades. Como no dia em que, de fato, um pouco de espaguete com molho vermelho caiu sobre ele, e a mancha escarlate sobre o palco, ou sobre o chão, causava o incômodo do sangue na arena. A mancha secava angustiadamente, e por pouco não sai – como se o sangue fizesse parte da própria arena, para nos lembrar que não existe morte sem sangue, para nos lembrar que o sangue faz parte da arena e nada pode tirá-lo de lá.
De todo ambiente, era o chão que se destacava. Ligeiramente elegante, era uma composição quase pós-guerra, anos dourados, anos 50. Preto e branco. Conservado, ou novo – impossível dizer. Quadrados pretos intercalados de brancos. Preto branco preto branco do lado e em cima, formavam um tapete, um puzzle – melhor, um tabuleiro de xadrez, com diferentes peças que se moviam aleatoriamente. Bebiam água. A comida. Há palavras. Ou não tão aleatoriamente.
Nisso, era o gato que buscava de novo a presa.
Mas não sem divertir-se primeiro.
Ele pressente o cheiro de longe. Nessa hora, a alma só sorri, se é que a alma existe. O primeiro cheiro é o início da caçada, do prazer e da morte.
Mais macio do que a sombra, ele torce o pescoço em direção ao rato. Pequeno, frágil, cheio de pudores, de constante medo de tudo que não conhece, medo da própria condição de pequenez, medo de tudo que é maior, medo dele próprio. O rato, só medos. Medo, acima de tudo, de encontrar algo que o perturbe, que o ameace...
É o cheiro do medo que o gato sente. Isso torna a caçada melhor, mais interessante, mais cruel. É dessa forma que ele vê o mundo, é da sua natureza. Num sacudir de pelos, ele percorre a cozinha, um tanto asséptica, mas não tanto, e vê o pequeno camundongo aventurando-se da área de serviço, provavelmente, por onde entrou, pois lá existe uma imensa janela de luz que sempre fica aberta, para o armário de comida, um móvel baixo, nada surpreendente, bastante sóbrio e ao mesmo tempo tentador. O rato enlouquece ao perceber a presença do mal, tonto entre o faro da comida e o pressentimento do aniquilamento e da tortura, ora, tortura – achar comida e abdicar dela ou arriscar-se no blefe e perder a mão? A vida era a arte da eterna tortura... do não ter, do não querer e não poder, a tortura era a arte do não a si próprio.
O gato – nem tão grande, mas bem esperto! – sente a hesitação de segundos e quase pressente o sangue do outro dando voltas e voltas e voltas... e seu coração dispara, era a hora da caça, não podia ser outra, o que faria primeiro, deixaria ele fugir para pegar depois, e se ele fugisse de fato, melhor era então matá-lo a unhadas, mas que prazer existe em abater a presa assim tão facilmente, o que poderia ser, em última instância, a natureza da caça, ou o prazer dela? O que era prazer para um era caçar, e nesse jogo a outra ponta do prazer era o da caça, que tinha medo do abate mas amava, estranhamente, a ideia de fugir. E se a caça acabasse? Como um poderia ter poder e o outro poderia ter a possibilidade de fuga, de triunfo? Os dois só pensavam no próprio triunfo... no prazer do triunfo e na possibilidade da morte. A vida era a arte das possibilidades de vitória ... ou não.
O felino mexeu-se de uma só vez, num bote rápido, mas não tão rápido que pudesse tirar qualquer possibilidade de reação, de maneira que o rato escapa sobre aquele complexo tabuleiro de xadrez para o pequeno esconderijo entre a parede e a máquina de lavar.
Esse era o entreato.
Ali ficou o rato, entre a parede e a máquina de lavar, o cheiro da comida e o predador.
Talvez minutos, talvez horas. Ali, também valia a paciência. Os dois sabiam disso.
O gato espera.
VÍDEO - MÚSICA
Música - Último desejo (Noel Rosa) interpretada por Pedro de Quinane.
videomaker: Carlos Alberto Cunha Bastos
4 comentários:
Amado Flávio,
Sinto-me honrado! Muito Grato!
Adriano Nunes
Flavíssimo,
Que bacana essa ideia da revista! Você sempre congregando e divulgando ideias. Ao lado da palavra, essa é sua maior vocação.
Saudades dos papos na Travessa. Que tal a revista promover um encontro presencial de vários blogueiros? Assim, matamos saudades e reforçamos uns nos outros o amor pela palavra.
Obrigada por divulgar.
Bjs,
Roberta
Olá Roberta, Olá Adriano,
a idéia de marcarmos um papo presencial com vários blogueiros é bem bacana sim. Podemos organizar isso, que tal?
Ah! antes que me esqueça, vc e a Elis estão escrevendo muiiiito.
Adriano, vc escreveu sobre Rio, o que é algo que eu não deixaria passar em branco, certo?
Um abraço!!!!
Caro Flávio,
Sim, o poema é sobre O Rio (de Janeiro) devido ao ocorrido sobre as favelas e a criminalidade, sobre o quanto sofre a população. Eu pus as letras minúscluas em todos os versos para expressar quão pequenos somos diante do próximo e incapazes de perceber isso. Não bastassem as misérias íntimas temos que conviver com as misérias-metrópoles da vida!
Abração,
Adriano Nunes.
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