Nostalgia da forma na poesia contemporânea
Todo gênero de arte procura uma forma própria para expressar-se. Assim a música e a poesia procuram um ritmo, o retorno de um som, uma frequência em busca de um módulo. Sem irmos longe demais, pode-se dizer que é do homem, do animal, de toda a natureza, a necessidade de um padrão. Cor, cheiro, qualquer sentido vivo quer é sua família, seu gênero, seu espelho natural, da raiz ao fruto. Repetir-se é perpetuar-se.
Assim a palavra em suas formas matrizes, do som ao sinal, à escrita, à poesia. Por ser espelho ou recriação ou correção da vida, a arte, mais que ser cópia ou imitação, quer alguma perfeição, como a do círculo, a clareza, quando não seu contrário destrutor de toda identificação, pois a tal ponto se chega pela negação da forma como nos extremos das artes plásticas contemporâneas, na decomposição sonora pós-atonal e, hélas, nesse silêncio gráfico que pretendeu ser poesia, o concretismo.
Um vôo brevíssimo sobre as formas da poesia, que desde sempre se apoiou no som, na constância de algum jeito de retorno, como o pulsar do coração, a marcha, nos levaria à série de invenções formais que até hoje são - que glória - contemporâneas. Como essa maravilha que é o soneto, que vem de Jaocopo de Lentini ou Guittare D´Arezzo e chega a Petrarca e daí a todos nós. Ou as décimas de Vicente Espinal e Lope de Veja, que em Jorge Guillén atinge a perfeição moderna. Ou os tercetos de Dante. Sem multiplicarmos os exemplos, chegamos à “retranca” de Alberto da Cunha Melo.
Um despretencioso vôo sobre a poesia que se fez desde as rupturas do século XIX viria mostrar-nos como toda tentativa de revolução formal resultou em poucas obras primas, como as de Rimbaud, Whitman, Mallarmé ou nos equívocos de Cummings, Tzara, e que Pound e Eliot precisaram balizar com boa teoria e uma prática quase sempre exemplar.
Entre nós, desde Mário, tanto Bandeira quanto Drummond foram melhores quando, após as demolições dos anos bélicos do modernismo escreveram seus grandes poemas, já então libertos de todo intento destrutivo. Ouso dizer que nossa melhor poesia contemporânea deixou no limbo a reinvenção da roda e buscou algum caminho de fazer arte, pois disso é que se trata:arte. Vemos que João Cabral é um construtor até mesmo quando fugindo da música reinventa o octossílabo e cria formas como as estrofes duplas, nos poemas mais maduros. Assim Lêdo Ivo, tão versolibrista quanto sonetista. Ou mesmo o rebelde Murilo será melhor na contenção italiana. Enquanto Cecília sempre fez poesia.
Mais recentes, vemos um Gullar que após sonetos exemplares deu à dispersão absoluta do Poema Sujo uma suprema confissão de dor humana e se apresenta já agora como um falso liberto de regras, num modo pessoalíssimo de por ritmo em linhas desestruturadas que são poesia entre as melhores que se faz no país. Vemos o rigor de Ivan Junqueira, também o de Reynaldo Valinho Alvarez, o controle multiforme de Astrid Cabral e de Alexei Bueno. Paremos, pois exemplos não faltam, para mostrar que há e se procura “acabamento”, arte poética, se já não é mais de escola é pessoal, donde nossa riqueza expressiva.
Tomemos como exemplo dessa busca a poesia de Alexandre Guarnieri, em seu recente livro “Casa das máquinas”, onde se expressa com rigor um exemplo dessa nostalgia da forma.
De pronto, o livro impacta como objeto gráfico impecável, a capa em seu branco e preto de engrenagens que vão à contra-capa e se desliga, máquina posta em repouso após a leitura tão instigante e múltipla, tal como terá desejado o autor. Entre a juventude e a maturidade, pois nos altos trinta a quase quarenta anos, o poeta se apresenta dono de seu texto, sua machine a émouvoir. Poesia composta, lúcida, programada como desejaria Valéry ou fez Ponge, aqui citado, entre tantas e pertinentes epígrafes baseadoras de uma poética explícita, oposta a todo discurso prosaico e sem tentar subornar o leitor com distraídos prantos.
Em correspondência comigo o poeta fala de “concretude buscada, status mesmo, de coisa, escultural, de design gráfico, de organização do espaço gráfico, de uma dimensão plástica a considerar” como sendo seu projeto, sua poética.
Saíssemos de seu texto em busca de raízes, com as numerosas epígrafes, mas também além delas, encontraremos toda uma armação que como leitores contumazes nos leva às origens de sua poética visivelmente culta. Pensemos.
A poesia é historicamente um campo de batalha entre fundo e forma, em teorias e práticas de múltiplos matizes que sempre contrapõem o quê e o como dos versos, privilegiando ora uma ora outra cara dessa moeda de tantos e discutidos valores. Se o sonho da forma pode resultar no parnasianismo ou no gongórico, o desprezo dela pode cair no excesso de prantos e dores do mais juvenil romantismo. No entanto, no difícil equilíbrio está quase sempre o melhor do que se escreveu em qualquer língua. Escolha cada leitor suas preferências, mas cabe recordar Camões, San Juan de la Cruz, Dante, Shakespeare, Goethe, para termos paradigmas. Mais: Pensemos na beleza gráfica do soneto, sua singeleza arquitetônica, dir-se-ia grega ou clássica, ou na terza rima do Dante. Todo poeta quer dizer sua visão de mundo de forma “perfeita”ou irretocável, embora Valéry nos diga que não se terminam poemas, que eles são abandonados... Tal como não temos um corpo, sim que somos nosso corpo, assim creio que quase todo poeta desejaria a sua obra uma perfeição de esfera, mais que de círculo, uma sonoridade de Nona ou de Cantata de Bach, redonda e completa entre dois silêncios.
Vejo em Guarnieri essa busca, bem expressa nas palavras acima. Busca de concretude, design gráfico. Creio que ao caçar essa forma ele a expõe se com excesso eventual, em poemas quase esculturais, blocos de palavras que aqui e ali requerem espacejamento para caberem nos limites retos, verticais, da composição. Sim, composição como tipografia, composição, antes, temática.
Mestre em Tecnologia da Imagem como profissional, seu texto espelha sua tecnologia poética, ainda que na aparente frieza do esculpido poema lateje uma paixão, contida mas visível no seu declarado amor pelos “assuntos” que compõe.
Desde o interruptor , poema que abre o livro, até o último, post-scriptum, o controle da máquina do poema é ininterrupto, formalmente contido mas plenamente expresso, se uma ou outra vez algo obscuro.
Sem citarmos na íntegra, começa seu livro dizendo:
o funcionamento central desta escrita
guiada desde engrenagens gerais, do com-
plexo centro decisório (no miolo,o código)
aos simples acessórios do chassi ( da capa
dura às páginas d´alguma gramatura); clara
aqui, uma gramática das máquinas, caixa
de palavras ...............................................
....................................................................
ninguém sabe, ainda, ao certo, ao torque
da chave na ignição, se ligará ou não.
Eu diria que sim, ligou, funcionou. O livro se fecha com estes versos:
haverá uma máquina intacta, ainda,
entre ossários e cadáveres; extinta
a vida biológica, haverá ainda
..............................................................
a máquina anônima, total, renomeando
com números o que restar do mundo.
Por certo os espaços entre as palavras, aqui, diferem do original, mas ilustram de algum modo a grafia do poeta, cujo livro é todo um minucioso trabalho de composição também tipográfica.
Titulei este texto remetendo o leitor a pensar na suposta nostalgia da forma que vejo na poesia contemporânea, extendendo o termo às décadas finiseculares do XVIII. Retomando daí, cabe lembrar o constante ir-e-vir dessa aparentemente inacabável guerra estética privilegiando ora o fundo ora a forma da poesia. Talvez se possa pensar que já não se guerreia assim, mas duvido, pois os apresentadores do livro recolocam a questão e o próprio poeta, no seu visível esforço de contenção do texto, nos limites dos blocos tipográficos, espaceja aleatoriamente as palavras, como acima vagamente exponho.
Tal esforço é válido se o poeta quer pela forma explicitar sua poética, na qual o rigor formal é essencial. Embora não rime, há sonoridade em seu texto. Não isomorfo no conjunto, seu texto é sempre fiel ao que quer dizer, longa ou brevemente. E é clara a metáfora geral do livro, de ser máquina a poesia.
Toda forma de arte pode ser vista como máquina, um mecanismo engrenando fundo e forma, quês e comos. Assim a linguagem, assim os recursos técnicos do poeta, da língua natural aos efeitos que a colocam em movimento.
Nostalgia da forma, pois as destruições a que se submeteu os leitores com fraudes e fracassos de toda ordem pediram restaurações e elas vierem por muitos mestres, muitos ainda vivos, por sorte, e produzindo. Tolices destrutivas sempre aparecem, não há licença de motorista para os autores do que pretendem seja poesia o que escrevem, inócuas palavras soltas no espaço que permanece em branco, carência de sintaxe e sentido, hermetismos vários.
Assim como não temos um corpo, somos nosso corpo, a poesia não tem uma forma, ela é sua própria forma, existente como formato ou buscada como faz Guarnieri nestas máquinas vivas e rumorosas.
Se é certo ver com Mauro Gama, no posfácio, que não há o lirismo choroso de tantos poetas na obra de Guarnieri, há sim, se contida pela arte, compaixão. E exemplos de sua compaixão (paixão com) são os textos, entre outros, da página 111, de título “sonho acordado”, na 99, “música de trabalho”, das “rotinas” de 137 e seguintes. Só exemplos. Por certo não há pranto, lamentos. Mas na frieza aparente, há compaixão. Se Guarnieri rejeita “dar-se em espetáculo” como dele fugia e criticava João Cabral, por certo faz da dor geral seu tema, sua matéria, indo atrás da frágil e ininterrupta vidraça do real.
Criando essa forma compacta, quase dura e de difícil controle, esses blocos maciços de linhas descritivas, o poeta foge do formalismo do verso contado em sílabas, mas demonstra em sua busca de uma forma, o que considero uma nostalgia dela, da consagrada, ao alcance de todos.
Não foge é de sua condição de poeta e quero crer ( ou desejar...) que se renda à nostalgia que vejo neste seu esforço de originalidade ao rejeitar as formas fixas, de todos, e tentar criar a sua exclusiva maneira de dizer a que veio, pondo a girar as máquinas de sua casa.
Nascido em 1930 no Rio de Janeiro, Izacyl Guimarães Ferreira foi adido cultural e diretor de centros culturais para o Itamaraty no Uruguai, na Costa Rica e na Colombia, entre 1984 e 1999. Antes, de 1953 a 1983 foi publicitário em agências no Brasil e no exterior e na Rede Globo; estreou na poesia em 1950 e desde então vem mantendo produção regular. Em 1980, reuniu no volume Os Fatos Fictícios toda a obra anterior. Depois disso já publicou cerca de uma dezena de livros, entre os quais os citados Memória da Guerra (2002) e Discurso Urbano (2007, com o qual ganhou o prêmio da ABL). Ensaísta e divulgador de poesia, o autor publica com frequência artigos em jornais, revistas e sites especializados; email: higefe@uol.com.br
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Alexandre Guarnieri nasceu no Rio de Janeiro (em 1974), é Arte-educador habilitado em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ, e Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO). Integrou, a partir de 1993, o movimento carioca da poesia falada. Fez parte da primeira formação do grupo performático "V de Verso", coordenado pelo poeta Chacal. Junto com o poeta Flávio Corrêa de Mello, coordenou o NCP (Núcleo de Criação Poética) do Sobrado Cultural, na zona norte do Rio, onde mantinham o recital mensal "Poesia no Sobrado". Publicou poemas em revistas e jornais, dentre eles o Panorama da Palavra (do qual foi colaborador), a Revista Urbana, Revista Eutomia, O Carioca, La Isle.com, o Suplemento Literário de Minas Gerais. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ, 2011) é seu livro de estréia; email: alex.guarni@gmail.com
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