terça-feira, 2 de setembro de 2008

Facada


Aquela faca ficou me mordendo a noite inteira. Não que eu não soubesse usá-la. Que eu já havia visto milhares de vezes facas crispando sangue por todos lados. Há muito que lido com elas, faz parte da profissão: serrar pequenos ossos de animais. Mas ali, naquele tampo de mesa ladrilhada, o mosaico era diferente, era totalmente novo, como a baba que se renova no canto dos lábios em cada minuto salivar, secando a garganta de uma vida que já ganhou muitos pães, mas que agora se perde em jogatinas com ninfetas de quinze ou dezesseis anos, com o conta-giros ligado, martelando as cinco pontes de safena. Então, eu já não sabia se recuava e recusava a personagem do matador que eu incorporara com aquele vulto branco do meu lado soprando misérias no ouvido, ou se partia pra dentro e estripava a carne e deixava o sangue espargir pela sala, na mesa, na parede e no sofá novo, bem branco. Eu poderia encerrar aquela firula esganada que cortou a vida daquelas quatro pessoas que se engalfinhavam entorno do carteado. “Passa a porra do trunfo, se não chulapo tua cara de rebordosa babaca com dois tapas bem dados”, gritei. Houve um não sei o que e tudo que estava à volta se turvou. No dia seguinte, acordei, andei pelo salão e a vista estava mais nítida. Não havia sangue em volta, nem dinheiro sobre a mesa. As cartas também não estavam por lá. Fui à cozinha e abri a gaveta, as facas estavam todas arrumadas e na pia havia uma garrafa de Uísque cheia, fechada. Minha cabeça martelava um enjôo. Corri para o banheiro, lá, vi: a privada completamente ensangüentada e dentro dela uma espécie de célula disforme, muito pequena, abrindo e fechando o que seria a boca. Suavemente me dizia: escroto, escroto.

5 comentários:

Anônimo disse...

Flávio!! Sou Thiago, irmã da prestigiada Tatiana Carlotti!

Chequei o blog que você indicou pra mim lá no blog dela e só queria dizer que adorei!! Valeu pela dica!!

Abração!!

Flávio Corrêa de Mello disse...

Opa Thiago!

Que bela visita. Espero, de coração, que você volte mais vezes por aqui. Quem mantém o poema/processo é o Moacy Cirne. tem um link aí do lado para um outro blog dele. Abração!

Elisa Kozlowsky disse...

Vi esse kit psycho na vitrine de uma loja e achei horrível.

Anônimo disse...

Trata-se de uma obra de arte, uma bela composição, rica e densa, instigante talvez, mas precisa no que se propõe... Parabéns, gostei muito!!!

Rachel Souza disse...

UI! Maravilhoso!!!!
Ainda bem que não sei jogar carteado.rs