terça-feira, 5 de agosto de 2008

ENTREVISTA - MAURO GAMA

Depois de vinte e seis anos sem publicar nenhum livro de poemas, o poeta e crítico literário Mauro Gama, lança pela editora A girafa, o Zoozona seguido de Marcas na noite. O livro reúne poemas escritos durante a década de 70. A noite de autógrafos acontecerá no próximo 14 de agosto, às 19.30 na Livraria da Travessa - Ipanema. Em entrevista ao Rio Movediço, Mauro comenta a participação no movimento práxis, seu processo de construção, o cenário poético contemporâneo e o ato de traduzir poesia, entre outros temas.

O Poeta e crítico literário, Mauro Gama, nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Estreou em livro com os poemas de Corpo verbal (1964). Ganhou a vida como redator de editoras e obras de referência, entre as quais cinco enciclopédias, como a Barsa 1, a Mirador internacional (onde foi assessor editorial de Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss) e Barsa 3. Trabalhou na primeira fase do Dicionário Houaiss e colaborou na imprensa carioca, sobretudo em revistas da Bloch, no Jornal do Brasil e O Globo, em cujo caderno “Prosa & Verso”, de vez em quando, ainda resenha livros de literatura. Auto-exilado de sua grande e violenta cidade, vive hoje principalmente de lexicografia e traduções, em sua Quinta da Janaína, em Mendes/RJ. Outros livros publicados: Anticorpo (1969) e Expresso na noite (1982), poemas; José Maurício, o padre-compositor (1983), ensaio; Michelangelo – cinqüenta poemas (2007: tradução para o português coetâneo e estudo crítico; Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional) e Zoozona seguido de Marcas na Noite (2008). Mauro Gama tem mais cinco livros de poemas inéditos, dois volumes de crítica e história literária, e muitos cadernos de diário, que escreve há quase 50 anos.


Até o momento seus livros foram publicados esparsamente, Corpo Verbal (1964), Anticorpo (1969), Expresso na noite (1982) e Zoozona, seguido de Marcas na noite (2008). O senhor poderia comentar os porquês de tantos intervalos de tempo?

MG: Salve, Flávio, estive lá no seu Blog. Está muito bonito e repleto de grandes atrações.
Os intervalos de tempo se devem a dificuldades editoriais. Nunca tive como financiar uma edição. Nem a compro depois, como fazem outros. Ofereci o Zoozona a diversas editoras, que o rejeitaram tranqüilamente. Já não há José Olympios, e mercenários não faltam, proliferam como cogumelos. Editoras como A Girafa e o Ateliê Editorial, de S. Paulo, são exceções, que têm à frente homens cultos e de grande respeito pela arte poética, José Nêumanne Pinto e Plínio Martins. Além disso, acho não publicar quase tão bom quanto publicar, pelo menos durante a vida do autor. Ele pode mexer mais em seu material e lhe imprimir maior firmeza. Isso a gente aprende com um dos maiores mestres da música de todos os tempos, Johannes Brahms.

Qual a sua relação com as vanguardas poéticas dos anos 50 e 60 e como se apresenta a práxis criativa na sua produção literária?

MG: Na década de 50 eu era adolescente, já escrevia mas não publicava poemas. Na década de 60, colaborei (com material do segundo livro, Anticorpo) na revista Praxis, dirigida pelo poeta paulista Mário Chamie. Eu e outros poetas cariocas víamos afinidades entre o que fazíamos e a prática poética do Mário. Meu primeiro livro, Corpo verbal, já estava escrito quando conheci o Chamie, a revista e Cassiano Ricardo, grande poeta que sempre deu apoio à vanguarda literária. A minha poesia, assim como a dos outros poetas cariocas da época, não tem nada a ver com as propostas teóricas da revista Praxis. Só um ou outro leitor de superficialidade muito obtusa nos vincula à plataforma do grupo. Ou então um ou outro confrade desonesto, com má-fé, para gabar sua suposta "independência": alguns dos que, com essa atitude, chamaram o nosso trabalho de "poesia-práxis" são copistas de poesia portuguesa consagrada ou da norte-americana beatnik. Em todas as literaturas do mundo escritores podem-se reunir numa revista. No Brasil, não. A epistemologia do brasileiro é o preconceito.

Interessante a questão sobre o preconceito... Como é possível localizá-lo? Digo, por qual viés ele se apresenta, pelo econômico, dado que a disponibilização de recursos como bolsas, prêmios, feiras e congressos são mínimos e não contemplam os vários poetas que fazem um trabalho sério? Ou pelo nucleamento de confrades? Ou o preconceito está na academia, na sua prática seletiva e restritiva?

MG: Não, veja bem. Quero dizer que, por falta do hábito de leitura e do aprendizado sistemático, o brasileiro, em geral, tende a avaliar as pessoas e as coisas através do preconceito, da noção acrítica e emotiva. Nossa sociedade é toda minada pelo preconceito (social, racial ou étnico, moral, sexista, regional, etário etc. etc.) e, nos círculos de escribas e artistas não é muito diferente. Entre outros preconceitos e prevenções que se vêm mantendo nesses meios, está o da oposição ao “grupo”, à associação, a qualquer tomada de posição coletiva. Como se o artista tivesse de ser ainda mais individualista do que os outros, de uma originalidade rigidamente pessoal,“imaculada”, coisa que, é claro, não existe. Na verdade, eu só quis tocar nesse ponto; os outros se mostram em toda parte: no plano econômico, que você citou, em que se insiste em dar à literatura – e a outras atividades – uma função elitista, “elevada” e “enobrecedora” (quando ela precisa exatamente estar livre para esculhambar tudo, se for preciso); ou no plano do academicismo, que lhe é correlato e tende a discriminar o escritor às avessas, num clube fechado, de nababos bem nutridos e porta-vozes do privilégio. Aliás, o privilégio, que no Terceiro Mundo é um dos maiores alicerces do poder, é outro fruto do preconceito, ativo e passivo.

Segundo minha leitura, há em Zoozona uma celebração à vida. A aglutinação vocabular de Zôo e Zona gera um painel temático no qual, na primeira parte, vários animais se humanizam, sendo que cada poema apresenta um animal-tema que é potencializado sentimental-espacialmente e cada um guarda sua característica essencial, seu universo e modo particular de se relacionar com a natureza. Já na segunda parte, a zona, o foco temático é a prostituta. A mulher, ali, é a terra-mãe. Houve, de sua parte, uma possível tentativa de um mosaico natureza-mãe geradora de vida e também a constituição de um kosmos maior que engloba o Zoo (natureza>campo) à Zona (cidade>concreto), Kosmos, esse livre e crítico, reflexo de paradigmas e relações sociais?

MG: Sim, sem dúvida, e tenho de louvar o modo como você percebeu essas coisas. Celebro a vida ao mesmo tempo mais verdadeira e mais ameaçada. As relações sociais percorrem o livro todo, envolvendo também a situação do país em relação aos outros, sobretudo os EUA. É uma poesia de crítica e denúncia permanentes, a partir da ternura pela vida e, especialmente, pelos seres que, ao contrário de nós, vivem aquém da opção e da consciência ativa.

Em se tratando da forma, um dos matizes presentes nos seus poemas de Zoozona e Marcas na noite é o recurso fanopéico. No seu laboro, o som puxa o som, assim como a palavra- puxa- palavra?

MG: Certamente. Não sei se diria "fanopéico": são recursos fonéticos, como aliterações e paronomásias interativas. Você fez bem em lembrar o "palavra-puxa-palavra". Num ensaio memorável (Esfinge clara, 1955), Othon Moacyr Garcia estuda isso na poesia de Drummond. Vem de longe, portanto, mas eu de fato procurei sistematizar esses meios. Há na minha poética um inegável caráter estrutural, isto é, um modo de construir o texto em que os significados e os significantes se tornam indissociáveis do ponto de vista expressivo.


6. Rinoceronte

É o que tem uma sólida bagagem
o candidato de peso ainda mais
que protegido soldado pela
blindagem. Espesso de vista
curta- bólido em massa explosiva
de rumo e bitola reta – quem
melhor pode afrontar (ou esmagar)
leopardos e lebres livres? É todo
de pedra e placa concentração
de granito: não fosse um duro
pendor para a solidão e um
fundo de olhar aflito ou
essa modéstia às vezes de
ter um chifre somente seria
um chefe inconteste na alheia aldeia
dos homens perito em roubos
serviços de arrombamento
e finanças suplícios e morticínios
triturador de detentos tonel
de desesperanças – o líder mais
resistente e o mais apto já visto:
ah! Se não fosse inocente
bem chegaria a ministro.

Cada poema de Zoozona e Marcas na noite apresenta-se como um todo, bem condensado. Não se notam os recursos de enumeração caótica, cortes abruptos e fragmentações. Há uma preocupação com a unidade poética no percurso dos poemas, digo, tanto na concepção da idéia maior sobre os propósitos da obra quanto à realização verso por verso, poema por poema?

MG: É verdade, particularmente nessa fase. É bom, aqui, lembrar a cronologia dessa produção: o Zoozona foi escrito de 1979 a 84. Marcas na noite, de 1969 a 78. Concebo o texto poético como um objeto autônomo no contexto da página e "curto" até a forma exterior que ele assume. Uso 'enumeração caótica' e cortes bruscos em coletâneas posteriores, ainda inéditas.

Decantação

Vêm do sol – posto estes maduros rostos
por entre as folhas os pendões os ventos
vêm sedentos os lábios em frios timbres
noturnos os véus cobrindo os sussurros
num toque de violeta beijo e rendas;
sem que apreendas os nomes a etiqueta
certa em meio aos ruídos indistintos
estalidos nas estantes recortes de
diálogos distantes se acendendo ou
se apagando: e pior desgosto que o
de ouvir e até rever esses rostos
é olhar a paz e o pó dos vidros ou
dos lenços os cheiros e os papéis
se desbotando e escutar em tudo isso
o seu silêncio seu mais liso sedimento
de silêncio na madeira do ar – na poeira.



Antônio Houaiss, no prefácio, te nomeia como o poeta de outros carnavais. Em quais carnavais o senhor se insere no âmbito contemporâneo de nossa poesia?

MG: Houaiss se refere a outros patamares do desenvolvimento da minha linguagem, acredito que particularmente aos conflitos assumidos entre o Corpo Verbal e o Anticorpo, o primeiro de lirismo quase hermético, o segundo todo crítico e repleto de agressividade política. "De outros carnavais" também quer dizer, figurativamente, "de outras obras", "de outras oportunidades".


Em Saída, no Zoozona, o senhor afirma que a poesia brasileira sempre importou os modismos europeus. Ainda os importamos?

MG: No Brasil, infelizmente, sempre se importou e se macaqueou demais. Como você é professor de português, deve-se ver louco ante a passividade com que, hoje, se incorporam todas as sobras do inglês que rola pelo mundo. Na literatura das gerações mais recentes, quero dizer, da década de 1980 para cá, confesso que vejo menos dessa atitude "importadora", embora tenha sido rara sua substituição por outra necessariamente melhor, de maior inventividade ou coisa parecida. Vejo muita confusão, depois de várias décadas de falência educacional. A mesma coisa acontece com as outras artes: há no cenário dezenas de contribuições precárias, indefinidas, mas cujos autores procuram "aparecer" seja como for, e promover esse aparecimento.

Entretanto, quanto maior o fluxo de traduções, maiores as possibilidades de trocas poéticas. O senhor traduziu obras de poetas da estirpe de Michelangelo, livros no campo da sociologia e da dança. Como se dá seu trabalho de tradução? O senhor coaduna com os preceitos de transcriação e recriação. Sendo mais específico, pode nos descrever qual foi o critério que o senhor utilizou para traduzir Michelangelo?

MG: Sim, a tradução, levada a sério, possibilita um mundo de novas trocas, sendo excelente exercício para o poeta e o escritor em geral. Penso sempre na necessidade de se transcriar ou recriar. Meu critério está definido na teoria e na prática daquela coletânea de Michelangelo. Tenho algumas outras experiências, de poetas da língua inglesa e francesa. Para a minha posição, texto não “se adapta”, não “se facilita”, nem “se atualiza”: se passa para um texto e contexto lingüístico equivalentes. Por isso passei o italiano do renascentista Michelangelo para o português do renascentista Camões. Tudo ali está no século XVI. Dá trabalho. É preciso pesquisar a datação de cada palavra. Nenhuma das que usei nos poemas traduzidos apareceu depois, nos séculos XVII ou XVIII, p. ex.


Como o senhor avalia a inserção cada vez maior da Internet no universo literário? O senhor acompanha algum sítio de literatura?

MG: A Internet reflete em todos os seus aspectos o caos dos nossos dias. Tem de tudo, 95% de lixo comunicativo ou comunicóide, mas também instrumentos preciosos de expansão da literatura e dos conhecimentos, como o Google, a Wikipedia etc. Entre os nossos sítios brasileiros, recomendo menos os de discussão estéril, com cacoetes e cagações de regra de natureza acadêmica, e mais os blogues vivos como o Balaio, dirigido pelo poeta Moacy Cirne, com amplo espectro de divulgação literária e ideológica, e o seu espaço, o Rio Movediço.
Por último, após a publicação de Zoozona, quando teremos o prazer de lermos outras obras do senhor?

MG: Tão logo uma editora queira publicar um dos meus cinco ou seis livros de poemas ainda inéditos, inclusive os mais recentes. O último deles, Com'andantes, parece ser uma culminância do que consegui até o momento. Tenho também dois livros de crítica e história literária, e muitos volumes de diário, que ainda preciso pentear.

O CONVITE PARA O LANÇAMENTO:








6 comentários:

dade amorim disse...

Ótima entrevista, Flávio.

Não sei se Mauro lembra disso, mas há uns trinta anos ele foi chefe da editora da FGV, quando eu começava por lá, na sala de preparação de originais.

Sabe que ainda não havia lido nem um poema dele? São muito bons.

Parabéns pela entrevista.

Beijo.

gustavocarmo disse...

Parabéns aos dois pela entrevista. Ao entrevistado e ao repórter.rs

O livro já entrou na pauta para A Dica da Segunda do meu blog.

Moacy Cirne disse...

O Mauro, ótimo sujeito, ótimo poeta, foi muito generoso ao citar o Balaio. Enquanto isso, vou aproveitar para conhecer o Rio Movediço, que, confesso, estou vendo/lendo pela primeira vez. Um abraço.

Anônimo disse...

Flávio, ficou ótima a entrevista. Adorei o Rinoceronte, pena que moro em Sampa. bjs. Tati

Rachel Souza disse...

Interessante! gostei.
Flávio, aproveito e convido pro "Redemoinho artístico" especial com a poeta Elisa Lucinda. Dia 15 às 17 horas no Sesc- Tijuca.
Bjo.

Anônimo disse...

Muito boa entrevista! Isso é o que falta nesse universo de livros jogados pro alto: um pouco de pé no chão! Parabéns!