Exatos 90 anos se passaram desde
a semana de arte moderna em 1922, durante este intervalo tivemos e temos alguns
outros momentos também ímpares que agitam as límpidas águas das feiras e festas
literárias. Cada um de uma maneira diferente, de um jeito peculiar traz em
evidência o autor e seu produto de criação, a obra. Mas este último sábado e
domingo, tivemos o FIM de Semana do Livro no Porto, realizado no Morro da
Conceição, ele foi único, especial.
O clima de informalidade proposto
pelo FIM através de suas estratégias de popularização da literatura (e aí, vale
o recurso do papo de botequim, da cerveja gelada, da conversa solta... do
cortejo pelo bairro e das diversas oficinas espalhadas pelo morro), este clima é
mais uma iniciativa que se soma aos intentos de disseminar a literatura e criar
outras formas de intervenção cultural. Em uma reportagem, Raphael Vidal, o
idealizador do FIM, afirmou que uma das propostas da festa é a de aproximar o
escritor ao leitor de uma maneira informal, ou seja, de igual para igual, e de
certo modo, essa assertiva deixa claro sobre qual terreno estamos pisando:
incentivar à leitura, desmistificar o escritor e trazê-lo para o lugar comum de
ser mais um citadino, nada além do que isso, ou ainda, de uma maneira mais
poética se assim podemos ousar, passar um pouco de poeira nas togas e nos
galhardetes que revestem a aura sublime das letras.
O fato de um escritor ser cultuado
como quase um ente intocável tem muito a ver com os processos de desigualdades
educacionais e sociais que permeiam o nosso Brasil. O status quo e o conhecimento adquirido pelos letrados não estão ao
alcance de uma população que observa várias dificuldades de letramento e que
não realiza a leitura como o ato de identificação ou contemplação com as
experiências trazidas pelo autor. Assim, durante séculos o escritor escreve
para um público de eleitos, para boa parte da classe média alta, um segmento
social que detém os mecanismos de funcionamento do entretenimento cultural, e
para a classe mais alta ainda, aquela que realmente detém as nossas forças
produtivas. São raros os escritores que possuem identificação com o público em
geral.
Ainda há muita pobreza de leitura
no Brasil. É complicado elencar todos os fatores que contribuem para o número diminuto
de leitores, podemos sinalizar o preço do livro e dos modelos praticados para
sua comercialização, o preço e o custo de se ir a eventos como Bienal e Flip, por
exemplo. Estes eventos são válidos, mas inviáveis do ponto de vista econômico,
já que uma parcela significativa não tem condições de pagar o preço do ingresso
da Bienal ou o estacionamento ou uma passagem e estadia para Paraty. O importante é verificarmos uma vontade
política de mudança. O FIM neste caso talvez faça parte do embrião de série de
eventos diferentes, que promovem a aproximação do leitor e do escritor de
maneira peculiar, não mais os velhos modelos instaurados. É mais ou menos o que
afirmou Marcus Faustini em uma etapa do evento FLUPP PENSA no morro do Borel,
foi uma fala sobre a militância da literatura periférica: “É necessário criar
uma ideia de militância na literatura, porque falar de literatura é tão
importante quanto fazer literatura, pensar lugares de literatura, pois só
escrever não é suficiente para viver de literatura...”. Enquanto início, nós
devemos torcer para que o FIM promova e abarque mais segmentos do meio
literário que não participam nos encontros da agenda oficial da literatura
brasileira, nas principais mesas ou na contemplação de bolsas.
E quando a literatura se
apresenta na informalidade, alocando-se longe de uma esfera empertigada, quando
a assumimos com familiaridade e a trazemos para nosso cotidiano, para nossa
casa e articulamos planos de como melhor abordá-la, divulgá-la e criá-la, podemos
enxergar uma estratégia clara de incentivo ao ato de ler e o de produzir, nada tão
profundo, mas visceral, pois surge uma diversidade de leitores. Isto é um
esforço político, embora seja tão simples como o feijão com arroz, tão simples
como ser filho de pais oriundos do cartão de ponto e da fila de ônibus, gente
do povo, gente como a gente, talvez isso seja a peraltice de Macunaíma ante a
possibilidade de dar uma rasteira no Visconde de Sabugosa ou talvez seja apenas
o Lima Barreto, negro, pobre, marginalizado, sorrindo para o choro que corria
solto no alto do mirante do Valongo durante o sábado do FIM, dizendo: É isto! (não
é nada à toa que Lima Barreto é um dos escritores mais lembrados por Raphael
Vidal). Que este evento se some ao surgimento de outros eventos em outras áreas
do Rio de Janeiro e do Brasil e que não destoe de sua característica principal,
a informalidade, é no fundo o que desejamos.