Reproduzo abaixo a matéria de Ana Paula Souza para a Carta Capital.
A partir da quarta-feira 2, uma pequena cidade brasileira tomará ares de centro mundial do livro. A Festa Literária de Parati, a Flip, chega à sexta edição com prestígio intelectual e grande repercussão midiática. Grifes culturais, como o dramaturgo Tom Sttopard e o quadrinista Neil Gaiman, ambos britânicos, estão entre os convidados deste ano.
Mas, se para quem está de fora da festa a iniciativa parece ter apenas qualidades, para quem caminha pelas trilhas editoriais ela é, também, um sinal dos rumos que esse mercado segue no Brasil. Seja pela transformação dos autores em celebridades, seja pela divisão do espaço entre algumas poucas editoras, a Flip acaba por simbolizar o novo momento do livro no País.
Há dez anos, uma editora como a Companhia das Letras emplacava vários títulos nas listas dos mais vendidos. Hoje, a despeito dos nomes fortes que possui no catálogo, enfrenta concorrência feroz. O mercado brasileiro, que, durante anos, esteve nas mãos de grupos familiares, foi sacudido nestes anos 2000. Houve, de um lado, a chegada dos estrangeiros, como os espanhóis dos grupos Planeta e Santillana, e, de outro, a passagem de bastão geracional em empresas nacionais.
A Ediouro, por exemplo, que teria interesse em abrir o capital, fez importantes aquisições no último ano e se tornou o maior grupo editorial do País. Ela é também, ao lado da Sextante (de best sellers como O Monge e o Executivo e Os Segredos da Mente Milionária), um exemplo desta nova era que poderia ser chamada de pós-Harry Potter ou pós-Código Da Vinci. Trata-se da era em que os livros de sucesso vêm embalados pelos padrões da indústria do entretenimento, com um marketing sem medida e o conceito de blockbuster a servir de bússola para as decisões editoriais.
É a esse modelo agigantado e declaradamente comercial que um evento como a Flip tenta fazer frente. Uns demarcam terreno pela força financeira. Outros, pelo prestígio. Ao esmiuçar tanto um lado quanto o outro, o que se descobre, no fundo, são diferentes modos de construção de um autor nestes tempos de concorrência aguçada.
Para se ter idéia, são lançadas, por mês, cerca de 1,2 mil “obras gerais” – didáticos, técnicos e religiosos estão fora dessa conta – no País. A Câmara Brasileira do Livro (CBL) registrou, na última pesquisa divulgada, em 2006, 545 editoras. “Talvez o nosso grande problema seja o fato de termos mais editoras que livrarias. E o grande comprador é ainda o governo”, observa Plínio Martins, editor da Edusp e dono da Ateliê.
“A economia cresceu e houve um sinal de que haveria também um aumento do público”, avalia Luciana Villas-Boas, diretora-editorial da Record, a segunda maior do Brasil. “Mas, neste momento, o que vemos é uma maior competição entre os editores. A competição cresce muito mais do que cresceram as vendas no período e, com o tempo, pode tornar o mercado pouco rentável.”
A grande questão a martelar na cabeça dos editores é: como se tornar visível neste bolo de capas e letras e ganhar dinheiro num país que, como todos sabem, está longe de ser campeão em consumo de livros? A Flip, o mais visível dos festivais literários brasileiros – outros tantos têm se proliferado –, é uma das respostas à pergunta.
Por mais que tenha todo um charme cultural, a festa de Paraty é, basicamente, uma operação comercial. Uma rápida conta indica, por exemplo, que mais de 40% dos autores escolhidos para esta edição pertencem à Companhia das Letras. E muitos dos escritores que por aqui passaram são editados pela britânica Bloomsbury, que negocia muitos de seus principais nomes com a Companhia e publica, lá, Jorge Amado e Chico Buarque.
O projeto todo, que inclui um programa permanente de educação, está orçado em 5 milhões de reais. O que o faz ser de natureza pública é o fato de quase todo esse valor ser captado via Lei Rouanet, o mecanismo de incentivo fiscal que permite às empresas aplicar em cultura parte do Imposto de Renda devido. Os patrocinadores desta edição são Unibanco, que tem participação na Companhia das Letras, e Oi! Outras duas editoras, Objetiva, CosacNaify, aparecem como colaboradoras.
“Nunca fui à Flip, mas imagino que seja uma festa simpática, uma boa badalação em torno do livro e afins. Mas eventos como este não podem ser feitos com renúncia fiscal para favorecer um público já privilegiado, que pode pagar os hotéis da cidade, e um sem-número de intermediários do mundo da cultura”, pontua Ivana Jinkings, da editora Boitempo. “O Estado não pode abrir mão do seu poder regulador quando se faz uso da lei. No caso da Flip, isso me parece evidente, já que a organização é privada e a promoção de autores e títulos se restringe a um número pequeno de editoras.”
Mesmo editoras grandes não entram na festa. A Globo não tem sequer um autor este ano. O editor Joaci Pereira Furtado, que fala em nome pessoal, não da editora, diz lamentar o fato de, em cinco anos, a empresa ter sido representada uma só vez, com o tradutor Mamede Jarouche, do Livro das Mil e Uma Noites, como mediador de uma mesa. “Nosso catálogo tem 800 títulos. É difícil imaginar uma razão para que nenhum outro interesse à organização.”
Este ano, o diretor de programação, Flavio Moura, foi à Globo e, segundo Furtado, “mostrou vívido interesse por Jamie Oliver, curiosamente, um chefe de cozinha, Maria Adelaide Amaral, que figurou semanas seguidas nas listas de mais vendidos com o romance que deu origem à minissérie Queridos Amigos, e o poeta Roberto Piva”. Oliver e Piva não puderam comparecer. Maria Adelaide não chegou a ser procurada.
“A Companhia das Letras tem um catálogo fora de série e uma ótima relação com os autores, consegue trazê-los”, argumenta Moura. “E várias editoras estão contempladas.” Em outros anos, de fato, a proporção da Companhia chegou a ser maior.
O dono da editora, Luiz Schwarcz, disse ser essa uma “conversa antiga e chata”. É que, desde a primeira edição, comenta-se o papel da casa na Flip. Mas deve-se levar em conta que foi ele um dos idealizadores do evento e, ao procurar outras editoras, em 2001, não encontrou grande entusiasmo. “Muitos editores acharam que seria uma concorrência para a Bienal. Poucos apoiaram”, limita-se a dizer, sem querer alimentar polêmicas.
Augusto Massi, da CosacNaify, dona de um perfil editorial próximo ao da Companhia, considera improdutiva a discussão. Para ele, o mercado brasileiro ainda não pode se dar ao luxo de desprezar qualquer ação que, de um jeito ou de outro, traga à luz o universo dos livros. “Um evento como a Flip é ótimo para a imprensa, que pode entrevistar autores aos quais não teria acesso, para o mercado livreiro, que fica aquecido, e para os editores, até porque reúne muitos agentes literários”, argumenta.
Mas, para além do valor simbólico e dos enormes espaços que a mídia dedica à festa, qual o retorno financeiro de um evento como este? “Para nós, até hoje, se houve benefício para algum livro, foi numa escala mínima”, atesta Luciana Villas-Boas.
Para os autores, a Flip pode significar tanto uma vitrine cobiçada quanto uma distorção de seu papel. O flerte com o universo das celebridades não faria mal à literatura? “João do Rio e Olavo Bilac deram mil conferências. O existencialismo, na França, foi cercado de glamour. O Musil lia em público, o Kafka lia os próprios textos também”, exemplifica Massi.
“Eu penso que, pelo contrário, a grande virtude da Flip é a de possibilitar uma aproximação, um contato direto entre os escritores e os seus leitores. Na Europa, creio que nenhum festival consegue fazer isso da mesma maneira, com um espírito festivo”, compara o português José Eduardo Agualusa, escritor que esteve no evento e fundador da editora Língua Geral.
Beatriz Bracher, ex-sócia da Editora 34 e escritora, sentiu-se menos à vontade nesse papel. “Eu nunca tinha ido, nem como espectadora. Fiquei desconfortável ao pensar em falar, achava aquilo meio fetichista. O escritor, se escreve, é porque não quer falar, quer escrever”, pondera. Mas Bracher não só foi, como gostou. “Foi bom ter esse contato. Há algo de interessante nesse encontro, mesmo com uma certa frivolidade no ar.”
O que não deixa de incomodá-la, não só na Flip, mas, sobretudo, na imprensa, é o interesse maior pelos autores que pelos livros. “Os livros continuam sendo escritos na solidão, mas, de repente, o autor vai ao jornal falar sobre a sua vida. Acho que isso afeta um pouco o ar que a literatura precisa respirar.” É fato que, cada vez menos, a qualidade do texto é discutida e, não raro, surgem autores que parecem sentar à frente do computador com um olho no tela e outro no mercado. Nesse sentido, não estaria a literatura perdendo o seu valor de resistência?
No complexo universo editorial que se desenha no Brasil, uma importante chave para a compreensão dos destinos de certos livros parece ser a imprensa. Qualquer leitor atento terá percebido que, de três meses para cá, os participantes da Flip são figuras carimbadas na mídia. A coincidência entre os livros que mais chamam a atenção nas livrarias e aqueles que tiveram divulgação também é óbvia.
A experiência de quem dá os primeiros passos no setor é ilustrativa. Uma das primeiras providências tomadas por Tito Montenegro ao criar a Arquipélago, em Porto Alegre, foi visitar a Livraria Cultura. Ao perguntar o que era preciso para ter uma boa exposição, viu o interlocutor apontar o dedo para uma página de jornal: “Disto aqui”. Mas, claro, a editora, que tem sete títulos e um Prêmio Jabuti, é quase invisível. “Mandamos o livro para a imprensa, mas sabemos que ele vai ficar empilhado, com outros cem, na mesa de um editor de Cultura. Só conseguimos divulgação por acaso. É uma possibilidade quase esotérica”, brinca Montenegro, ele próprio jornalista.
Mas nem só quem é novo e pequenino sofre. Ivana Jinkings, da Boitempo, desistiu de disputar espaço em lugares que considera viciados. “Os grandes jornais e revistas muitas vezes parecem boletins de divulgação dos grandes grupos e editoras e, praticamente, reproduzem seus releases (texto de divulgação)”, observa. “As matérias sobre lançamentos são publicadas num mesmo dia, como se fosse a coisa mais natural do mundo um jornalista ser pautado pelas assessorias de imprensa.”
Plínio Martins, da Edusp, acrescenta mais um dado a essa disputa oculta para o leitor. “O livro nunca foi um bom anunciante e, por isso, tem pouco espaço, fica relegado aos cadernos de sábado dos jornais.” Mas, a julgar pelos investimentos em marketing dos grandes grupos, tal quadro pode mudar.
Há pouco mais de um ano e meio, a Ediouro contratou o publicitário Lula Vieira para tocar um departamento com cerca de 30 pessoas. Seu primeiro trabalho foi com O Segredo: “Aí a gente reproduziu o lançamento de um filme, de um perfume”. Orgulhoso do posto, Vieira adora falar sobre o negócio e, ao contrário dos editores, ciosos de sua função cultural, não teme explicitar as regras do xadrez de cifrões. Ele diz que o marketing começa na captura do autor, passa pelo livreiro e, claro, aterrissa na imprensa. A potência do tiro está diretamente ligada ao tamanho do lançamento e ao perfil da obra.
“Um livro da Maitê Proença precisa de menos investimento em marketing porque a imprensa vai dar capa dos cadernos”, ensina. Numa tiragem de 4 mil a 5 mil exemplares, o marketing resume-se à internet e ao trabalho com a imprensa. A partir de 40 mil, vale a pena criar um brinde para a imprensa e o livreiro. “Com 100 mil exemplares você faz coquetel para os livreiros, convida o jornalista para ir a Cannes entrevistar o autor”, detalha, referindo-se, obviamente, a Paulo Coelho, capturado pelo grupo. “Quando é megaoperação, a gente foge da crítica, tenta colocar uma matéria num caderno de negócios, numa coluna de fofoca.” O próximo livro de Coelho, a ser lançado em agosto, consumirá uma verba de marketing de 1 milhão de reais.
As negociações com as livrarias seguem um padrão semelhante. Vieira troca, por exemplo, uma vitrine por três páginas de anúncio numa revista. São da Ediouro, não por acaso, títulos onipresentes, como O Caçador de Pipas, O Segredo e Memórias do Livro. A exposição agressiva segue, de certa maneira, a lógica hollywoodiana, de sucesso veloz, à margem da avaliação crítica. “No primeiro fim de semana, você já sabe se vai dar certo ou não. Se entrar para a lista dos mais vendidos, pronto, vai estourar”, contabiliza o publicitário.
Tal postura, evidentemente, incomoda os editores que, apesar de bem posicionados no mercado, trafegam por outra raia e ainda têm, como grande recurso, os espaços na imprensa. “Só divulgamos o livro a partir do livro. É claro que, hoje, não dá para ter preconceito contra o marketing como se tinha no momento em que ser editor era uma missão. Mas há alguns limites”, pondera Schwarcz.
Já as editoras independentes, que não têm, nem em sonho, como investir em marketing, penam para negociar espaços nas livrarias. “O mercado brasileiro do livro é um mercado vendedor, porque a oferta é maior que a demanda. Isso desequilibra a relação entre editoras e livrarias em benefício das lojas, que, por princípio, negociam a partir de uma posição de força”, diz Quartim de Moraes, editor da Conex, associada ao Grupo Nobel.
A Saraiva, há 94 anos no mercado, possui 2 milhões de títulos cadastrados e trabalha com 2 mil fornecedores. “A exposição funciona de acordo com o interesse do cliente. Num determinado bairro, o enfoque pode ser em auto-ajuda, perto de uma faculdade, livros de Economia ou Direito, por exemplo”, explica Marcílio Pousada, diretor-presidente da rede.
Nasceu também com a Saraiva um modelo espraiado, o das megastores e das redes. “Hoje, uma livraria tem de agregar outros serviços. Fomos os primeiros a trazer a Starbucks (rede americana de cafés) para o Brasil, temos uma área de eventos, enfim, procuramos atender o público de maneira ampla”, defende Pousada.
A mudança no perfil das livrarias acompanha, muito provavelmente, a mudança no universo de leitores. Uma classe média pouco afeita à literatura passou a consumir os títulos que, hoje, encabeçam as listas dos mais vendidos. Luciana Villas-Boas recorda o dia em que Marshall Berman (autor de Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar), ao ver a lista de mais vendidos no Brasil, em meados dos anos 1990, ficou impressionado com a qualidade. “Me lembro de ter dito que aquilo era sinal, também, de uma sociedade não leitora, e pouco democrática.”
Quando chegou à Record, há 13 anos, eram comuns as tiragens de 2 mil exemplares. Hoje, o mínimo são 4 mil livros. “Se você quer vender 10 mil, deve tirar 20 mil. É preciso abastecer o livreiro. Eles precisam ter uma quantidade que os estimule a fazer uma pilha”, arrisca. “Mas, claro, isso tem um custo de fabricação, armazenamento e transporte.”
Não por acaso, há quem veja o surgimento de uma bolha editorial no Brasil. A ausência de uma lista infindável de autores importantes em português – o próprio Tom Sttopard – é um dos indicativos de que a ânsia de publicação nem sempre vem ladeada por critérios claros.
“Percebemos que há uma injeção de dinheiro, mas que são poucos os projetos editoriais”, reflete Augusto Massi. “As grandes compras não necessariamente puxam a qualidade para cima. Editora não é só mercado. É projeto cultural.”
Cabe lembrar que, nos Estados Unidos, no início dos anos 2000, cinco grandes conglomerados passaram a controlar 80% das vendas de livros no país. Na Europa, grandes grupos e dinheiro de origem misteriosa também têm comprado editoras de prestígio.
Entre as Flips e os enormes displays colocados nas livrarias, o Brasil se insere nesse processo global de maneira ainda nebulosa. Resta saber o quanto o processo em curso mudará a qualidade do que lemos.
Um comentário:
Concordo com a Betriz Bracher da 34, de repente a vida do autor ganha mais destaque do que sua obra.
abração
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