sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fernando Pessoa - Que espécie de Homem sou...



Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou.
Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.
O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção — enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

5 comentários:

Daufen Bach disse...

Olá meu nobre!!

aquio lendo-te...

cara, as vezes eu fico "de cara" com esse Fernando Pessoa...rs. O cara é bom, bom mesmo! Paarece que o caro tem os espiritos soltos do mundo dentro dele e o dele, solto no mundo.

Éum dos meu favoritos. Tu já leu "Tabacaria"? aquilo é divino...

rs.

abraço a ti

Flávio Corrêa de Mello disse...

Sim, li sim. Daufen, fiquei uns três meses sem internet. Neste tempo caí dentro da leitura de FP. Ainda não li toda obra dele, mas essa é a intenção...
Tem um antologia de poemas de FP que o Ruffato organiza, se chama "Quando fui outro". A antologia começa com o texto que postei, o segundo é o tabacaria. Se você adquirir vai ver que a seleção dele é ótima.

abçs

Moacy Cirne disse...

No Balaio. Sim, no Balaio.
Você está presente.

Flávio Corrêa de Mello disse...

Opa Moacy,
quanta gentileza ao poetinha menor daqui. É uma honra ter um poema publicado no balaio, bacana mesmo!

abraços

Jandira disse...

Fernando Pessoa é o cara. Nele está o conflito entre o sentir e o pensar. O niilismo, o bucólico e "o que há em mim é simplismente cansaço// nem sequer disto ou daquilo//...há apenas supremíssimo...issimo...issimo cansaço". O cara consegue fazer um verso com um sufixo superlativo. É forma a serviço do poético.