domingo, 29 de junho de 2008

O LONGO ABRAÇO II




A sensação de tua presença é forte. Passo noites em claro ensopando lençóis. Dou corda no relógio como você fazia. Esquento o leite na caneca que você usava. Rego as plantas. Para cada uma pequenas palavras: Oi! Como Vai? As abelhas já passaram por aqui? Mato formigas. Sim é preciso matá-las, senão, um dia tudo será tomado. Assim, destrincho a rotina. Passo pela rua completamente despercebido, chutando quinas. No barbeiro, estou mudo. Na padaria, prefiro pães velhos. Por que você anda perambulando pelos cantos, invisível a minha vista, encostando-se no Santo Antônio da casa e procurando uma mulher para mim? Por acaso não sabe que já me cansei das pessoas e dos acenos cordiais, dos olhares. Mal eu começo uma conversa e já me desvio numa espécie de transe mental, distribuindo olhares aqui e acolá, restringindo-me às monossilábicas ações que apenas servem de ponte ao meu interlocutor, no entanto, grifa uma ranhura dentro do peito que esgota e me enche de desgosto de ter que, ainda assim, responder e emitir opiniões sobre diversos assuntos. Quisera ter somente as plantas e as abelhas e os insetos que circundam a casa com zumbidos estarrecedores. E por que há o grito que se faz chumbo na garganta, reprimido, gerando pequenas nódoas que acompanho atentamente, quase todos os dias, diante do espelho? Espelho este que não me reflete, reflete apenas deformidades daquilo que os outros imaginam ver, não o que calo no grito e na imagem refletida. Troquei o disco. Outras músicas antigas para acompanhar poemas também antigos. Um hálito de música que me faça parar de pensar. Um hálito de samba-canção, uma página em branco em frente a mesa nesta manhã de sol. A página em branco. Ainda não é tua mão que vai rodopiar pela sala os quatro passos da gafieira expondo a veia semi-rosada de teus braços gordos e polpudos. Me queixo em silêncio e reproduzo apenas os meneios da cabeça. É chato, dizem. Mas é sobrevida. Frases que não pronuncio. Frases de saudade.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

MEMÓRIA

É memória. Sim, memória. O interfone toca: restaurante Sol Nascente. Sim me lembro. Frango com quiabo. Foi isso. Ele ficou divagando comigo lá na mesa: “As paredes estão fechando sobre nossos pés”. Entre uma garfada e outra, um olhar e outro pra esse frango que, de repente, tem a minha cara, sua cara. É memória: a foice ceifou a conversa. Calei. Longos anos se passam desde que conheci seu corpo envolto no lençol, protegendo a cabeça cheia de escaras, fístulas e a escada espinhosa que nunca acabava. Eu era novo. O sol me falara timidamente sobre sobrevida. Então escutei: “Mas um homem renasce em cada sarça ardente e o alfabeto se renova rumo a um ponto macio sob o qual ninguém se apossa de nada. Aliás, as pessoas conversam em tons que não entendemos. Disseram-me que são luzes, túneis luminosos e que você sempre tem esse cordão umbilical, assim como eu”. Eram tempos: teu corpo que guiei na altura dos quarenta e oito quilos. Outro dia você veiopara almoçar o mesmo frango com quiabo. Os pés encostados. As agulhas, espetadelas e as letras garrafais desenhadas nas caixas de remédios. Veio. Perguntou: “O girino que nadava na bacia de relógios esquecidos encontrou alguma borboleta?”. Olho para o frango. O que há de real nele, as penas ou o pescoço torcido ou o tom cada vez mais moreno que escurece a pele? Uma baforada quente de um hálito me beija com sua típica ironia de quem sabe todas as respostas ao papo do quiabo com o frango: “São absurdos, entende?”. Mas não são não, porque a cria sempre se desdobra em mil e uma bolotas, mil e uma tetas. E vai bailando... muito além da compreensão momentânea de que é capaz um estúpido frango ensopado com quiabos... mas delicioso, delicioso.

sábado, 21 de junho de 2008

LANÇAMENTO - RETALHOS

Hoje, 21/06, tem o lançamento de Retalhos, primeiro livro de Rachel Souza. A conheço desde a oficina Tijuca em Crônicas que ministrei no Sesc-Tijuca. Habituada aos textos curtos, retalhos é uma coletânea de pequenos contos cheios de poesia e urbanidade. Texto intimista. Bela estréia!



quinta-feira, 19 de junho de 2008

ENTREVISTA - ONDJAKI



ENTREVISTA a Flávio Corrêa de Mello e Tatiana Carlotti *

Ondjaki é um escritor da nova geração angolana e é um freqüentador assíduo do Brasil. Por aqui já saíram dois romances de sua lavra: Bom dia Camaradas (Agir) e Os da Minha Rua (Língua geral). Eu e Tati fizemos esta entrevista na época do lançamento de Bom Dia Camaradas, em 2006.


Conte um pouco sobre a sua trajetória, seu contato com a literatura e o que te levou a escrever?

Nunca se sabe quando a escrita nasce dentro de nós. A minha trajectória é a de nascer em Luanda, uma cidade cheia de estórias, de ficção, de fantasia, também de pobreza e muitas vidas diferentes. A minha literatura apareceu primeiro nos poemas, tristes, da adolescência. Depois fui para o conto. Depois aprofundei a poesia. Depois iniciei-me nos romances. Quando dei por mim já estava a escrever...


Conte um pouco sobre o seu livro, Bom Dia Camaradas, como você concebeu a idéia de escrevê-lo?

Foi o desafio de um editor amigo, angolano. Ele queria um livro que falasse da minha perspectiva da independência de Angola. Eu nasci em 1977, dois anos depois da independência, e eu pensei que a minha visão sobre todo esse processo histórico, era a minha própria infância. Organizei algumas memórias, preparei alguns capítulos e comecei a escrever. Claro que tive que ficcionalizar a minha vida, e a dos outros também. Mas um livro é sempre isso.


Bom dia Camaradas é dedicado aos camaradas cubanos. Como vocë avalia a participação de Cuba em Angola durante a guerra civil que eclodiu entre o MPLA e a UNITA?
Esta resposta exigiria muito mais espaço, porque sou contra avaliações e respostas superficiais. Mas digamos que a presença cubana em Angola foi fundamental para impedir que os sul africanos tomassem o poder em Angola, nas várias ofensivas que fizeram durante os anos 80. A cooperação cubana também ajudou parte da população, com assistência médica e educacional. Só posso considerar essa presença como positiva.




Atualmente, como é a relação entre política e literatura em Angola, ainda é forte?

Penso que é ainda muito forte. Mas acho que os escritores devem acima de tudo obedecer aos seus ímpetos ficcionais, estéticos. A literatura deve ser um compromisso do autor com o seu mundo interno, ainda que muitas vezes esse caminho se faça falando e repensando o real, o histórico. Mas o ponto de partida deve, acho eu, ser interno. A verdadeira arte vem de dentro.


Como vocë avalia a importância da incorporação de dialetos e palavras características do falar angolano no processo de criação de sua prosa e de outros escritores africanos?

A incorporação ou exclusão de determinados falares, é uma opção estética. Serve a minha literatura, serve algumas das estórias que quero contar. Vejo essa incorporação de ritmos e de palavras como uma necessidade estética de cada um.


Qual o espaço que existe para a nova literatura em Angola?

Todo o espaço. A literatura angolana está em permanente nascimento. Nós, os novos escritores, sentimos é o peso da qualidade daqueles que nos antecederam, isto é, fomos antecedidos por grandes nomes e é difícil não sentir isso. Mas gosto desse desafio. A boa literatura nunca foi fácil, nem em Angola nem na Conchichina.


O que é a boa literatura para você?

Não sou especialista em literatura, apenas sinto que a boa literatura engrandece a arte de escrever e o modo de sermos humanos. Há livros que acrescentam valores culturais à Humanidade.


Quais autores angolanos ou africanos, você recomendaria para o público brasileiro?

São muitos, mas poderia falar de Luandino Vieira, Ruy Duarte de Carvalho, Ana Paula Tavares, Manuel Rui, Boaventura Cardoso, João Maimona, Mia Couto, Luis Bernardo Honwana, Eduardo White, Paulina Chiziane, Conceição Lima, Germano de Almeida...


O que vocë diria para o leitor brasileiro, que está conhecendo o seu trabalho agora?

Não sei o que dizer... Faz sentido pedir que nos leiam, a todos os autores africanos, sem preconceitos e com abertura sensorial para nos receberem na nossa diversidade?...



* Esta Entrevista foi concedida para o especial Lusofonia da Carta-Maior

segunda-feira, 9 de junho de 2008

LANÇAMENTO - GREGUERIAS


Recebi da Amauta editorial e repasso:




Nesta quarta-feira próxima, dia 11 de junho, a Amauta Editorial lançará mais um autor inéditono Brasil: Ramón Gómez de la Serna. De toda a sua vasta bibliografia, GREGUERIAS (com tradução de Vanderley Mendonça) é um livro em processo. Escrito entre 1910 até o ano de sua morte, 1963, essa escritura atomizada e intuitiva, de revelação momentânea, Gómez de la Serna a explicava com a seguinte equação: METÁFORA + HUMOR = GREGUERIA. Sobre as Greguerías, Borges dizia que Ramón, ali, colocava as palavras umas contra as outras. E Cortázar, em prefácio de uma das inúmeras coletâneas editadas deste livro, acrescentou: "Devo a Ramón conhecimentos e linhas de fuga".

Esperamos vocês para uma noite de homenagem a este grande criador com a participaçnao especial de Adolfo Montejo Navas, leituras e uma "exposição" gráfica das Greguerías na CASA DAS ROSAS, Av. Paulista, 37 - Tel.: 3285.6986 (Metro Brigadeiro).




quinta-feira, 5 de junho de 2008

AGOSTINHO NETO



Neste ano completam-se 29 anos do falecimento de Agostinho Neto, poeta e médico por formação. Ele foi um dos líderes do MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola) e do processo revolucionário que culminou com a libertação do povo angolano do jugo colonialista português depois da revolução dos Cravos e, logo após, foi proclamado o primeiro presidente da República Popular de Angola e também participou ativamente da União dos Escritores de Angola.

Agostinho Neto exerceu anos de militância e guerrilha. A prática entre os companheiros do movimento independentista e tanto a medicina quanto à poesia foram instrumentos de uma luta que se forjou, sobretudo, pelo direito à vida.

Sua obra literária pertence a uma forma especial de poesia, em que as principais preocupações do poeta foram instigar, pelo verso, a prática revolucionária capaz de gerar transformações e afirmar uma identidade cultural nacional, necessária para a revolução política que fervilhava em Angola. A poesia criada por Agostinho destaca-se pelo caráter insubmisso e libertário, uma poesia dolorosa projetada para um futuro promissor.

Em Sagrada Esperança, livro lançado na década de setenta, porém escrito inicialmente ao longo dos anos quarenta, nota-se a esperança de uma Angola livre em detrimento à existência de cânticos simples de saudades, como vemos nos versos abaixo, do poema de abertura da obra:

“Minha mãe / (todas as mães negras / cujos filhos já partiram) / tu me ensinaste a esperar / como esperaste nas horas difíceis. / Mas a vida / matou em mim esta mística esperança / Eu já não espero / sou aquele por quem se espera. / Sou eu minha mãe / a esperança somos nós / os teus filhos / partidos para uma fé que alimenta a vida (...)”

Podemos perceber que a esperança de Agostinho sedimenta-se numa espécie de renascimento. A mãe, no caso a representação da África, não pode mais esperar pela partida ou pela morte de seus filhos e cabe aos mesmos a inauguração de um novo tempo, de uma nova liberdade:

Atingi o Zero /Cheguei à hora do início do mundo / e resolvi não existir. Cheguei ao Zero-Espaço /ao Nada-Tempo/ ao eu coincidente com vós-Tudo / E o que é mais importante: / Salvei o mundo!


Assim constrói-se a poesia, como um ponto nascedouro, próprio de uma pátria a ser fundada. Ricos em oralidade, seus poemas constituíram-se como cânticos capazes de organizar seus compatriotas para um conflito armado que durou de 1961 até 1975. Mesmo antes deste período, Agostinho Neto foi preso e mandado ao exílio, e foi durante o exílio que ele compôs boa parte de sua obra.

É impossível dissociar os mecanismos de criação literária aos fenômenos sociais impostos por anos de colonização portuguesa, principalmente nos autores da geração de Agostinho. O povo de Angola conviveu com exploração demasiada do solo, das pessoas, dos abusos sexuais, do escravagismo, da coisificação, de modo que os substratos desse gênero de colonização fomentaram uma literatura alicerçada no desejo de não se submeter ao colonizador. Marcadamente, os poemas, os romances, os contos e os dramas escritos na época refletem a série de fatores relativos à ocupação e suas conseqüências.

Diversos contemporâneos de Agostinho, entre eles Antônio Jacinto e Luandino Viera (José Matheus Vieira da Graça), este português de origem, uniram-se em organizações e agremiações cujos objetivos eram protestar contra o governo português e a política Salazarista. Dessa forma, organizaram o embrião do processo libertador. No fim da década de quarenta, com a eclosão do movimento Novos Intelectuais de Angola, várias revistas, concursos e recitais eram feitos em Luanda. Com a intenção de revigorar a identidade cultural angolana. Muitos desses autores foram a base de formação do MPLA, que além de lutar pela independência, combateu por mais vinte cinco anos as forças da UNITAS ( União Nacional para Independência Total de Angola) e os exércitos regulares do Zaire e da África do Sul.


A União dos escritores Angolanos nasceu em 1975, com a república. Depois de enfrentar uma série de percalços e dificuldades por conta da guerra civil, a união, assim como o país, vive um período de projeção e organização de seus eventos. Tem um selo editorial próprio para lançar seus associados e um círculo de leitores com cerca de quinhentos membros cadastrados. No momento, a união reflete temas como pensão para escritores – esta é uma necessidade não somente para os escritores angolanos, mas para a classe dos escritores em todo mundo – incentivos de bolsas e projetos de criação de bibliotecas no interior angolano.




* Este post foi publicado inicialmente no especial lusofonia da carta-maior.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

POEMAS SUÍÇOS - PARC BASTION

Este é o segundo poema da série dedicada ao livro Poemas Suíços


PARC BASTION


Ainda é quarta no Parc Bastion
e sentadas no banco de madeira
verde, igual a todos os bancos
de todas as cidades do mundo,
as primeiras minissaias retiram
a poesia do tiro no escuro.

Lá, há uns poucos velhos casais,
vestidos à moda, passeando,
piqueniques e vinhos,
cachorros e jovens contentes,
cantando, fumando erva,
sem infortúnios aparentes.

Nos tabuleiros de xadrez
as mães-torre do parque
movem-se, imponentes.